PSICOSE (Conto de Rodrigo Domit)

Nunca fui de confiar em gente sem pescoço, mas aquele era o único sujeito disposto a levar-me a um bairro tão próximo - no taxímetro dava menos de quinze reais e os motoristas que rondam a rodoviária costumam idealizar longas idas à zona sul, dando-se ao luxo de desprezar as corridas até o centro.

Ao abrir a porta traseira, reparei que estas poderiam ser mantidas trancadas pelo motorista. Prevendo um possível risco, deixei a mochila no banco de trás e sentei-me na frente. Era melhor mesmo estar perto, caso fosse necessário entrar em um combate corpo a corpo. Desde que entrou no carro, desleixado, sem nem colocar o cinto, fiquei de olhos nos movimentos daquele sujeito mal encarado, meio corcunda para o lado direito - o que deixava o lado esquerdo um pouco abaixado, de barba e bigode por fazer, com um daqueles chapéus que não sei dizer se é uma boina ou um boné sem aba.

Durante o trajeto, tentei ficar em silêncio, mas, após alguns minutos, ele puxou conversa. Com um grunhido emburrado, tentei puxar de volta, mas ele insistiu, achando que eu não tinha entendido, e eu cedi. Acabamos trocando duas ou três frases decoradas sobre a violência na cidade - no dia anterior haviam roubado um cara da TV e deu em tudo que é jornal, os bandidos não respeitavam mais ninguém. Apesar da conversa, eu ficava atento a cada mudança de marcha, quase me precipitei a impedi-lo quando ele foi pegar o rádio para entrar em contato com a central.

Após meu engano, fiquei relaxado por alguns momentos. No entanto, ao olhar pela janela, percebi que estávamos passando por um viaduto pelo qual não deveríamos passar - ao menos não pelo caminho que eu costumava fazer. Em um primeiro momento, cerrei os punhos e contrai cada músculo do corpo, pensei que ainda podíamos tomar o rumo certo, quem sabe cortando por trás do Passeio, ou pela Tiradentes. Mas foi então que ele começou a desacelerar, em pleno viaduto, local desconhecido e perigoso, afastado das ruas mais movimentadas. Eu precisava ser rápido, utilizando as armas que tivesse no momento - que se resumiam a uma caneta esferográfica e um pacote de balas de menta. Em um movimento só, tirei a caneta do bolso, apertei-a contra o pescoço do safado e ordenei que acelerasse. Surpreendido em pleno pulo, ele começou a acelerar e tentou retrucar, disse-me que tinha família e que só estava tentando ganhar a vida. Não me deixei levar por aquele choro falso. Além do mais, para cima de mim é que ele não a ganharia. Ao alcançar quase cem por hora, puxei o volante para o meu lado, com toda a força possível.

O carro bateu no muro de contenção - por muita sorte não caiu do viaduto - e ainda girou duas ou três vezes antes de ser atingido pelo carro que vinha logo atrás. Eu, que estava de cinto, saí praticamente ileso. O pilantra, no entanto, que já devia estar de tocaia, pronto para me aplicar algum de seus golpes, morreu na hora, dizem que quebrou o pescoço com o impacto no volante. Eu duvido muito, aquele bandido nem tinha pescoço.

Ilustração de Robson Vilalba publicada com o conto na revista ler&Cia







Autor: Rodrigo Domit
Contato: rodrigodomit@gmail.com
Blog: http://rodrigodomit.blogspot.com

Ilustrador: Robson Vilalba
Portfólio: http://robsonvilalba.carbonmade.com

Concurso: III Concurso de Contos ler&Cia - 2011
Organização: Grupo Livrarias Curitiba - PR
Classificação: Seleção para publicação

3 comentários:

  1. Adorei o conto. Surpreendente o final. Muito bem escrito. Ri muito apesar da tragédia que sofreu o pobre motorista.rsrsrsr

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  2. Legal o conto. Gostei mesmo. O ritmo sustenta perfeitamente a paranoia do protagonista. Parabéns!

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