Saí, fechei a porta, passei pelo corredor, olhei o número na porta do apartamento 502, me lembrei da mulher feia que mora lá, desci as escadas me lembrando também da lentidão do elevador com sua porta pantográfica, cumprimentei o porteiro com um aceno de mão, andei pela calçada até a esquina, olhei para a cabine da PM, vi um guardinha sentado, palitando os dentes, cheguei mais perto e notei que ele também me olhava, e não sei se por causa do palito, continuei
olhando e ele se levantou, mudou o palito de posição com a língua, tirou-o da boca, quebrou-o entre os dedos, saiu da cabine, ajeitou o revolver no coldre, pegou no cassetete para se certificar de que ele ainda estava lá, veio caminhando em minha direção, parou ficou me olhando, eu olhando para ele que me perguntou se eu tinha documentos, eu disse sim, ele pediu para ver, e enquanto olhava para a minha carteira de identidade, olhava também para mim, batendo o documento na mão como um Oficial Nazista, prestes a identificar um judeu, em seguida perguntou se havia algum problema, eu disse não, ele me entregou a carteira, voltou para a cabine, sentou-se novamente e eu atravessei uma das pistas da Avenida Vieira Souto em direção à praia de panema, parei no canteiro do meio da avenida, olhei novamente para a cabine, notei que ele me olhava, atravessei a outra pista, parei na calçada da praia, olhei para a cabine, olhei novamente para o mar, olhei rapidamente para a cabine, assustando o guarda que se mexeu na cadeira sem tirar os olhos de mim, olhei para o mar, para a cabine, para o mar, para a cabine, e enquanto eu fazia isto, o guarda pegou o microfone do velho rádio que havia dentro da cabine, se levantou, ficou falando e me olhando olhar para o mar e para a cabine, até que eu ouvi algumas sirenes e parei de olhar para o mar e passei a olhar para a cabine e para os três carros da PM que pararam
fazendo um grande estardalhaço à minha frente, batendo portas, chamando a atenção da multidão, que vaiou quando saíram em disparada me levando para a delegacia do Leblon, onde me esperava
um delegado gordo, educado, que, ao saber que eu estava ali apenas por ter olhado as piruetas que o guardinha fazia com um palito à boca,
disse ao seu auxiliar para me liberar porque eu era louco, coisa que eu não aceitei, e exigi que eles me levassem para o lugar onde haviam me encontrado, pois eu não voltaria andando até Ipanema, e o auxiliar
fez um gesto para o delegado, um gesto como se querendo afirmar que eu não era louco, e sim, um folgado, um aproveitador, e o delegado, educadamente, pegou no meu ombro e me levou a uma pequena cela onde havia mais de trinta presos, dizendo que se
eu falasse mais uma palavra ele me colocaria ali dentro, e eu disse “tudo bem” e saí rindo por ter dito duas palavras, e na porta, quando descia os degraus, olhei para trás e vi o delegado rindo, e nessa hora senti um forte cheiro de laranja vindo de uma barraquinha
com rodas de bicicleta estacionada na porta da delegacia, e fui até lá, pedi uma laranja, o homem pegou uma bem grande, colocou na maquininha de descascar, rodou a manivela, a casca foi caindo em uma caixa já cheia como se fosse um grande cadarço de sapato; de
tênis para ser mais preciso, e depois o homem me entregou a laranja, juntamente com uma faca muito amolada, de cabo ensebado, e eu cortei a tampa da laranja, entreguei a faca e o dinheiro a ele, e fui
chupando a laranja em direção à praia de Ipanema, e ainda na praia do Leblon, comi o bagaço da laranja, joguei o resto num balde de lixo de um quiosque de sanduíche natural, fui andando, parei novamente
onde a polícia havia me prendido e fiquei olhando para a cabine até o guarda me ver, se levantar novamente, chegar até a porta e ficar comentando alguma coisa a meu respeito com um outro guarda
que estava lá naquele momento, sem se importar de apontar
para mim, que olhava para a cabine e para o mar, para a cabine e para o mar, e depois de não sei quanto tempo, chegou um microônibus da PM com vários outros soldados, parou perto da cabine, dois deles desceram, conversaram com os dois que estavam na cabine, e esses, pelo que me pareceu, passaram as informações para os outros, inclusive falaram a meu respeito porque apontaram para mim, depois o guarda do palito partiu no microônibus, me deixando lá sentado em um banco de pedra, agora olhando somente para o mar por uns quinze minutos, coisa que era o que eu queria fazer desde que saíra de casa, e passados esses quinze minutos, me levantei, atravessei novamente a Avenida Vieira Souto, em sentido contrário, fui em direção à Rua
Joaquim Nabuco, entrei no prédio, subi as escadas, me lembrei da mulher feia do 502, senti pena do seu marido, entrei no apartamento e voltei a ficar só, como estava antes. "
Autor: Nerino de Campos
Contato: nerinoc@yahoo.com.br
Blog: http://blogdonerino.blogspot.com
Concurso: Concurso Cultural Contos do Rio - 2007
Organização: Caderno Prosa & Verso - Jornal O Globo - RJ
Classificação: Seleção para publicação
olhando e ele se levantou, mudou o palito de posição com a língua, tirou-o da boca, quebrou-o entre os dedos, saiu da cabine, ajeitou o revolver no coldre, pegou no cassetete para se certificar de que ele ainda estava lá, veio caminhando em minha direção, parou ficou me olhando, eu olhando para ele que me perguntou se eu tinha documentos, eu disse sim, ele pediu para ver, e enquanto olhava para a minha carteira de identidade, olhava também para mim, batendo o documento na mão como um Oficial Nazista, prestes a identificar um judeu, em seguida perguntou se havia algum problema, eu disse não, ele me entregou a carteira, voltou para a cabine, sentou-se novamente e eu atravessei uma das pistas da Avenida Vieira Souto em direção à praia de panema, parei no canteiro do meio da avenida, olhei novamente para a cabine, notei que ele me olhava, atravessei a outra pista, parei na calçada da praia, olhei para a cabine, olhei novamente para o mar, olhei rapidamente para a cabine, assustando o guarda que se mexeu na cadeira sem tirar os olhos de mim, olhei para o mar, para a cabine, para o mar, para a cabine, e enquanto eu fazia isto, o guarda pegou o microfone do velho rádio que havia dentro da cabine, se levantou, ficou falando e me olhando olhar para o mar e para a cabine, até que eu ouvi algumas sirenes e parei de olhar para o mar e passei a olhar para a cabine e para os três carros da PM que pararam
fazendo um grande estardalhaço à minha frente, batendo portas, chamando a atenção da multidão, que vaiou quando saíram em disparada me levando para a delegacia do Leblon, onde me esperava
um delegado gordo, educado, que, ao saber que eu estava ali apenas por ter olhado as piruetas que o guardinha fazia com um palito à boca,
disse ao seu auxiliar para me liberar porque eu era louco, coisa que eu não aceitei, e exigi que eles me levassem para o lugar onde haviam me encontrado, pois eu não voltaria andando até Ipanema, e o auxiliar
fez um gesto para o delegado, um gesto como se querendo afirmar que eu não era louco, e sim, um folgado, um aproveitador, e o delegado, educadamente, pegou no meu ombro e me levou a uma pequena cela onde havia mais de trinta presos, dizendo que se
eu falasse mais uma palavra ele me colocaria ali dentro, e eu disse “tudo bem” e saí rindo por ter dito duas palavras, e na porta, quando descia os degraus, olhei para trás e vi o delegado rindo, e nessa hora senti um forte cheiro de laranja vindo de uma barraquinha
com rodas de bicicleta estacionada na porta da delegacia, e fui até lá, pedi uma laranja, o homem pegou uma bem grande, colocou na maquininha de descascar, rodou a manivela, a casca foi caindo em uma caixa já cheia como se fosse um grande cadarço de sapato; de
tênis para ser mais preciso, e depois o homem me entregou a laranja, juntamente com uma faca muito amolada, de cabo ensebado, e eu cortei a tampa da laranja, entreguei a faca e o dinheiro a ele, e fui
chupando a laranja em direção à praia de Ipanema, e ainda na praia do Leblon, comi o bagaço da laranja, joguei o resto num balde de lixo de um quiosque de sanduíche natural, fui andando, parei novamente
onde a polícia havia me prendido e fiquei olhando para a cabine até o guarda me ver, se levantar novamente, chegar até a porta e ficar comentando alguma coisa a meu respeito com um outro guarda
que estava lá naquele momento, sem se importar de apontar
para mim, que olhava para a cabine e para o mar, para a cabine e para o mar, e depois de não sei quanto tempo, chegou um microônibus da PM com vários outros soldados, parou perto da cabine, dois deles desceram, conversaram com os dois que estavam na cabine, e esses, pelo que me pareceu, passaram as informações para os outros, inclusive falaram a meu respeito porque apontaram para mim, depois o guarda do palito partiu no microônibus, me deixando lá sentado em um banco de pedra, agora olhando somente para o mar por uns quinze minutos, coisa que era o que eu queria fazer desde que saíra de casa, e passados esses quinze minutos, me levantei, atravessei novamente a Avenida Vieira Souto, em sentido contrário, fui em direção à Rua
Joaquim Nabuco, entrei no prédio, subi as escadas, me lembrei da mulher feia do 502, senti pena do seu marido, entrei no apartamento e voltei a ficar só, como estava antes. "
Autor: Nerino de Campos
Contato: nerinoc@yahoo.com.br
Blog: http://blogdonerino.blogspot.com
Concurso: Concurso Cultural Contos do Rio - 2007
Organização: Caderno Prosa & Verso - Jornal O Globo - RJ
Classificação: Seleção para publicação