LILI E O LADO DE FORA DO AQUÁRIO (Conto de Vinícius Bovo de Albuquerque Cabral)

Lili levantou-se para escolher outra música. Miles, All Blues, desperdiçada em uma coletânea. No reflexo das portas de vidro decidiu perder dois quilos. E passar um café. Que tal ? Não precisa, disse Joaquim, sem pensar a que pergunta respondia. Lili, nua, na cozinha. Café e adoçante. Dois quilos. Fora uma única vez, ponderava, Joaquim. Aconteceria a qualquer um. Além disso, gostava de Lili. Talvez fosse amor, palavra de pouca incidência no vocabulário de Joaquim. Do banheiro entreaberto, escovando os dentes, Lili, com dicção de espuma, puxava conversa. Foi sem querer, justificava mentalmente Raimundo. Tá certo, eu quis, encorajado pelo uísque e pela saudade. Era incongruente, ele sabia. Incongruente e real: saudoso de Lili, na quarta dose envolvera-se com uma estranha. Se tivesse coragem, diria, em arremate à notícia da catástrofe: Lili eu te amo ! Não se embrulha uma jóia nos escombros, mas talvez ela compreendesse. Afinal reiterava Vocês homens são todos iguais ! Não, difícil demais para Lili, acreditava Joaquim. Ela falava da boca para fora. Era cautela, suposta prevenção contra o intolerável. Lili fazia votos de amor e de fidelidade, sobretudo esta, talvez aquele. A revelação seria insuportável. Gritos, Lili exigindo minúcias, onde, quando, foi bom ? e o nome dela ? Maria, ela se chama Maria, disse Joaquim na coragem do pensamento. Mas Joaquim era leal; talvez infiel. Contaria imediatamente e, calado, suportaria o escândalo, as canhestras tentativas de agressão, Lili batendo no peito e dizendo isso jamais aconteceu na minha família ! Pelo menos ela ignorava ( e os outros fingiam desconhecer) aquele caso do tio com a manicure. Lili fora treinada para o casamento. E Joaquim, angustiado, arrependido, sorria ao se lembrar daquela noite que jamais amanhecera.
Ela não merecia aquilo, incomodava-se Joaquim, pronto a dar satisfações. Lili: anel de compromisso, noivado e casamento, necessariamente nesta ordem em que se vai ignorando a possibilidade de haver alguém interessante dentre os outros sete bilhões de habitantes da Terra.
Ao invés de adiantar o passo, estancara na calçada assim que o verde do semáforo de pedestres começara a piscar. Não se tratava de reverência pelo vermelho que logo acenderia sinalizando o território dos carros que se perdiam noite afora. Apenas tranquilidade. Estava absorto na paisagem urbana de todo dia, vendo-a com olhos livres, olhos de turista: aquele prédio em construção, que já se ia erguendo em talvez 13 ou 15 andares no seu trajeto diário. Deliciou-se com a descoberta noturna, quando são outros os donos dos lugares. O filme lhe fizera bem, a liberdade é azul, dizia para si mesmo, apropriando-se mais do título que da película, sequer cogitando que bleu é azul-melancolia, saudade, blues. Não se apercebera que a câmera não invadia os cômodos, restringia-se a filmar de fora, sempre emoldurando a cena através dos batentes de uma porta ou do requadro de uma janela. Raimundo e o óbvio: a personagem vivia um recomeço. E, portanto, feliz, ele concebia, atribuindo aos outros o próprio sentimento.
Seguiu avançando sobre a faixa de pedestres, enganando-se livre, autômato do sinal verde, cabeça nas nuvens daquele céu monocromático das 11 da noite, para ele prenúncio de nuvens esparsas - e sol - no céu azul da manhã seguinte. Bastaria dormir e despertar, sem saber que roldanas girariam, engrenagens rangeriam, pesos e contrapesos revezando-se na máquina do mundo, aparentemente silenciosa na madrugada, embora audíveis o precitar de uma gota na torneira, um elevador que se movimenta desabitado e a imaginação de que os vizinhos ainda estariam se divertindo.
Era cedo para dormir, cedo demais para deslembrar-se de Maria, o que, entrementes, permitia, impunha que Raimundo caminhasse, Amanhecerá nublado, preocupou-se, alternando suas previsões na frequência incerta dos passos, na sucessão de esquinas, a caminho de casa. Acometido por um sentimento de perda percebeu que atravessara a rua sem contar as listras brancas da faixa de pedestres. Na certa pisei em algum pedaço de asfalto nu, repreendia-se.
Buscava assegurar-se do próprio destino contando as janelas acesas do prédio da esquina. Céu de brigadeiro haveria de amanhecer, acalmara-se novamente, pensando nas figuras que as nuvens formavam na sua infância. Ela não merecia aquilo, incomodava-se Joaquim. Atravessou outra avenida, livremente, distante da faixa de pedestres. E seguro porque olhou para os dois lados e não se aventurara antes de contar até cinco. Optou por prosseguir na contramão dos carros, do lado par da calçada, dizendo-se livre para escolher, comandar o próprio destino. Cartas na mesa, exigência pouco original de Lili. Nada de ocultar aquele corpo, aquela noite, aquele copo, convencia-se Joaquim que, resoluto, desliga a tv e se levanta como quem vai principiar um discurso, monólogo que se interrompe na garganta quando Lili, sem roupas, distraidamente alimentando os peixes do aquário, avisa: Joaquim, não dá mais, conheci outro cara. Raimundo sequer teve tempo de reagir ao estrondo da bola do guindaste que pendente inativa, às 10h19min34seg, desprendera-se da altura do 17 º andar, o penúltimo da construção e, vencendo andaimes e tapumes atingiu-lhe, exata, a cabeça.

QUADRILHA
João amava Teresa, que amava Raimundo
Que amava maria que amava Joaquim que amava Lili
(...)
Drummond






Autor: Vinícius Bovo de Albuquerque Cabral
Contato: aindapoesia@uol.com.br
Blog: http://aindapoesia.blog.uol.com.br

Concurso: Concurso de Contos do SESC-AM - 2011
Organização: SESC-AM
Classificação: 8º Lugar, Seleção para publicação

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