O LEGALISTA (Conto de Mario Filipe Cavalcanti)

“Que as leis sejam, portanto, inexoráveis, que sejam os seus executores inflexíveis (...)”
Marquês de Beccaria.


O Dr. Antenor de Barros Gouveia era um legalista lato sensu! Orgulhava-se disso. Para ele, ser assim rotulado era como receber uma insígnia de bravura e excelência. “Excelência...”, dizia ele, “verdadeiro tratamento digno a um magistrado de meu quilate!”. O orgulho do Dr. Gouveia não se limitava a isso não, como ele mesmo dizia constantemente, sua soberba era tão-só “a soberba da lei!” e, ele, humildemente, nada mais era que a bouche de La loi!
Não se engane, caro leitor, pois esta era somente uma das pérolas do Dr. Gouveia. No seu fórum a lei era dura, mas era a lei, como sempre gostava de dizer ao proferir as sentenças de condenação (adorava as sentenças de condenação!): “Agora, só podemos admitir, que a despeito de tudo e todos, ‘dura lex sed lex’”. Aquela jóia fazia vibrar o Ministério Público e bufar de raiva os causídicos, que tinham lástima por “tão pueril magistrado”, como diziam. Tudo isso enquanto os réus nada entendiam e perguntavam aos seus representantes:
- O que isso significa, doutor?
- Significa que o juiz é um babaca, vamos ter de recorrer...
Malgrado todas essas pérolas, o Dr. Gouveia era um exímio funcionário do Estado. Mais que isso, ele era a personificação do Estado na administração da Justiça! Gostava muito, desde a faculdade, da expressão Estado-juiz, era o que ele era. Como não só funcionário, mas como representação do próprio Estado, sentia o peso de sua responsabilidade...  Pasmem: Costumava dizer orgulhoso para todos os seus amigos da turma (no fórum) que já bastava o peso de seu merecido salário ao erário estatal, não iria solicitar ganhos extras, como auxílio transporte por exemplo.
- Qual o quê! Desabafava um de seus colegas. Os deputados cobram até auxílio paletó, por que nós não podemos solicitar auxílio transporte que além de tudo é extremamente necessário?
- Por que seria tão necessário assim? O colega pode nos trazer um argumento racionalmente verdadeiro e demonstrável? Interpelava o Dr. Gouveia.
- Ora qual, homem! Precisamos da razão para isso?! Somos juízes da vara criminal! O que tu queres de tua vida? A pena de morte por negligência?!
- Pois então, Gouveia? Diziam os demais reticentes.
- Vocês todos são uns frouxos! Maus pernambucanos!
- Maus pernambucanos estão nas ruas pensando nos crimes que vão cometer, meu caro! E você vai acabar se matando!
- Meras palavras retóricas... flatus vocis! Você poderia me dizer o porquê de ainda continuar utilizando a maldita retórica Cavalcanti?
Aquele debate geralmente encerrava-se ali...
*
Certa feita, ao sair de seu casarão no bairro de Apipucos, o Dr. Gouveia chamara por telefone um táxi ao qual pagaria com o dinheiro de seu próprio bolso. “Estás vendo, filho?” – dizia ele para o pequeno que (ainda) queria ser igual ao pai quando crescesse – “cumpre ser exemplo. Cumpre ajudar o Estado! Irei pagar com minha própria algibeira!”.
Dentro de instantes chegava o táxi. O porteiro lhe avisara. Dera a ordem. O enorme portão se abrira. Ele saiu. Entrou no táxi.
- Bom dia. Siga para o fórum do Recife. Agora, o mais depressa que puder, contudo, respeite as leis de trânsito, viu!
O taxista olhou para ele através do retrovisor inquietamente. “É ele?” perguntara o taxista para si. Ele jurava que ali, em seu veículo, finalmente e como nunca havia pensado, estava o velho juiz Gouveia! Aquele “Agora” e o apego idiota ao legalismo haviam contribuído muito na identificação do sujeito. Tinha muito chão até o fórum que ficava na ilha de Joana Bezerra, então poderia observar melhor...
O nobre magistrado observava a paisagem com seu resoluto ar de legalista. Ar de um indivíduo cheio, não só de si, mas de todo o poder do Estado. Um poder que se limitava à pronúncia da lei, claro. Dura, mas plena e inflexível. Afinal, “com um sistema penal tão frouxo alguém teria de ser inflexível!” Era o que dizia...
De repente, o silêncio da viagem fora quebrado:
- O senhor é o Dr. Antenor de Barros Gouveia, juiz de primeira instância, da terceira vara criminal de Recife, não? Que está prestes a pular para o Tribunal, para assumir o gabinete que vagou junto ao Dr. Melo Neto, acertei? Disse o taxista com voz mecânica.
Gouveia sentiu um arrepio tomar-lhe o corpo. Um rubor esquisito parece ter tomado seu tórax, o fato é que, do nada, estava com uma leve dor-de-barriga. Era acostumado a enfrentar imprevistos em seu gabinete, bem como na sala de audiências. Agora, estava fechado num táxi, cujas travas estavam bem cerradas. Fez-se de desentendido, mecanicamente quase...
- Doutor? Não me ouve? Com todo o respeito, ficou surdo depois de ouvir tantas presunções de inocência?
- O que o senhor quer? Desabafou Gouveia, esbaforido.
- Calma, doutor, muita calma nessa hora! Eu apenas lhe conheço...
“E como!”, reconheceu espantado o magistrado ao lembrar-se de ter ouvido um resumo de sua história profissional pela boca de um total desconhecido. Mas acalmou-se logo, ele não o conhecia, mas, como cidadão, conhecia bem o Estado. “Ah, Antenor, seu tolo! Ele o conhece, pois és representante do Estado..., te esquecestes de tamanha pérola?! Além do mais existem os Diários Oficiais para figurar nosso nome aos olhos dos outros!” disse para si o juiz, acomodando-se no banco traseiro do automóvel.
- Eu fui injustamente condenado pelo senhor há uns doze anos atrás... Continuou o taxista. Injustamente duas vezes. Uma porque era de fato inocente, duas porque a pena foi bastante pesada. O senhor parecia excitar-se do alto de sua tribuna ao falar aquela baboseira em latim... meu advogado concordou comigo: o senhor fora um grande babaca. Hoje, não sei mais como andam as coisas da Justiça, apenas conheço todo o código penal, tarefinha de casa de alguns presos decentes lá do presídio, sabe? E, pelo que sei, ao menos uma causa de diminuição de pena poderia ser administrada ao meu caso... Tinha menos de 21 anos, na época! E ainda mais, não havia roubado nada, aquele policial miserável é que colocara a arma na minha bolsa após negar lhe pagar pela dispensa da blitz!
- Na verdade, meu caro – disse com voz terna e superior, o juiz –, chama-se circunstâncias atenuantes o que o senhor quis invocar através de seu representante legal. No entanto era pura retórica vazia, tese de defesa...
- Para os diabos com a nomenclatura doutor! Eu era I-NO-CEN-TE-!       
Disse taxativo o taxista.
- Não podia nunca incorrer, com minha conduta ingênua, no 155!
- Na verdade, você incorreu no 157, meu caro...
- Para a merda com a verdade, doutor! Que importa o artigo quando o estrago foi irreparável!
Naquele instante Gouveia sentiu um torpor terrível... Começara a suar, afrouxou a gravata como nunca fizera frente a estranhos, chegara mesmo a desatar seu nó. Dentro de momentos iria morrer, ele sentia... “Ele vai me matar; ele vai me matar” era só o que pensava.
- Por gentileza!!!
Gritou quase como um doido.
O taxista se assustou.
- Diga, doutor...
- No próximo cruzamento retorne uma rua. Desejo tomar de alguns papéis em casa de minha filha.
Aquilo, claro, era tão-só uma desculpa para ver se o taxista era fiel ao itinerário do atual passageiro, ou se queria de fato matá-lo.
Os instantes até que o carro se aproximasse do cruzamento foram de terror.  O Dr. Gouveia se esbaforia, suspirava como um tubérculo. Sentia-se morto antes do tempo. E o pior, até então o maldito taxista não cometera nenhuma ação típica, antijurídica e culpável! Ele era por enquanto inocente de qualquer acusação! Os camaradas do fórum estavam certos! Ah, Cavalcanti, seu retórico tolo!
O sinal abriu. O carro fez rápido retorno e tomou o caminho assinalado pelo nobre Dr. Gouveia. Ele, estático como quem vê um vulto, estava trêmulo, gelado como um iceberg!
- O senhor está bem, doutor...? Onde fica a casa onde o senhor quer parar? ...Doutor?
- Sim?! Respondeu dificultosamente o magistrado.
- O senhor está bem? Não foi ao fórum dirigindo seu carro por estar doente?
- Claro..., que estou bem. Não fui por estar cansado. Para onde estamos indo mesmo? Ah, sim! Faça o seguinte, retorne para o fórum. Eram inúteis tais papéis!
Após alguns longos minutos no trânsito recifense, o táxi enfim chegara ao fórum. Gouveia sentia-se como um claustrofóbico dentro daquele veículo. Pagou a corrida. Fitou o taxista com seu olhar de águia velha e agradeceu.
- Por que o senhor me agradece, doutor? Está me pagando! Cumprimos nossa relação obrigacional! É pura gentileza para com um ex-presidiário, é isso?
- Obrigado, em nome da sociedade, meu rapaz, por ter se regenerado. Você deu provas disso hoje.
- Quando se está limpo, doutor, não se precisa tomar banho!
Ao entrar no fórum a primeira coisa que fez foi solicitar o auxílio transporte munido de motorista particular de sua confiança. Até porque não tinha condições de dirigir, estava sempre cansado.
Passou a demorar-se bastante na lida com os casos. Procurava diminuir as penas de qualquer modo. Sempre fazia a analogia in bonan partem, sempre aplicava a Lex mitior, a Lex tertia. E prestava bastante atenção nas excludentes de antijuridicidade!
Assustados, seus colegas se reuniram para almoço. Dr. Cavalcanti de Souza Santos, como sempre tinha o hábito de lhe inquirir primeiro, disse:
- Ora qual, homem! O que se passou com você? Estava pensando na morte da bezerra foi? Justifique para os amigos tamanha mudança!
Ouvindo aquilo, Dr. Gouveia meneou a cabeça e, com suave e assustadora voz, disse:
- Dura Lex..., sed LATEX, meus caros amigos! Os tempos voam, as coisas mudam!







Autor: Mario Filipe Cavalcanti de Souza Santos
Contato: mario.filipe@ufpe.br
Blog: http://filipemario.wix.com/cadernoazul

Concurso: Concurso Literário Nacional ANE 50 Anos - 2012
Organização: Associação Nacional de Escritores
Classificação: Seleção para publicação

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