DO SOPRO DA VIDA AO ESPIRRO DA MORTE OU SERÁ DO ESPIRRO DA MORTE AO SOPRO DA VIDA? (Conto de Mario Filipe Cavalcanti)



“Atchim!” E o homem se fez.
“Atchim!” E o homem se foi.
Seu Carlos, não obstante, era fiel à teoria do sopro de Deus. “Deus soprou o fôlego de vida nas narinas do boneco de barro e o boneco animou-se!”. “Feito desenho animado, vovô?”. “Isso, Marininha, feito desenho animado! Mas é melhor dizer mesmo é boneco de barro, já que é isso que tá na bíblia e a gente não pode alterar nada do que está escrito, senão papai do céu castiga”, "Oxe, mas já gosta de castigar esse tal papai do céu, viu!", pensava a menina já descobrindo a chave da adivinha.
Essa irredutível crença de seu Carlos durou, contudo, até o momento em que provou, ele mesmo, sem saber, sabendo, “sem querer, querendo”, a tese da Mariana depois de velha. “Oxe, vô, essa história tá mal contada... Olhe só, acho que Deus não soprou coisa nenhuma, espirrou! O senhor sabe a potência, o poder, a gravidade, a força de um único espirro bem soltado do nariz do homem?”.
Coisa de uns 160 Km/h segundo a revista científica que ela estava lendo naquela manhã. Mais forte que um tiro, munição invisível, vírus ao ar. Vida e morte. Morte e vida. Todas juntas e misturadas num mesmo balaio misterioso de coisas curiosas, mas muito das bestas. De células de células, mundos de mundos. De ser em ser. Sernãoser.
– Marininha, deixe disso, que espirro é coisa muito da fraca, quem já se viu um causo desses!
– Não, não, voinho, não mesmo! Aí é que o senhor se engana, nunca vi coisa tão veloz e poderosa como um espirro! Assim tchááááááá!, num só atchim!
– Palavras loucas, ouvidos mocos, menina boba! Disse o velho Carlos embalando-se na cadeira de balanço em que sua mãe lhe ninava quando menino.
Lembrou-se daquela conversa no átimo do momento desesperado em que sua garganta fechava-se ao ar oxigenado. Cérebro rápido, mais até que um espirro.
“Atchim!”
Berrou no meio da sala enquanto melecava todo o rosto e a mão do catarro desvalido. Aquilo era inesperado. Ainda houve quem dissesse do terraço da casa um “saúde!”. O seu Carlos não teve tempo de dizer “obrigado!”. Sentiu fechar-se a sua goela, pensou naquela história maldita do espirro e caiu sem vida no chão. Estava morto. Assim, finito est. Vive-se a prazo, morre-se à vista.
Tinha uma saúde de ferro. “Vovô é o baluarte da família, o peso da saúde dele nem os estivadores do antigo Porto de Recife conseguiriam erguer sem tremer na base dos pés!”, diziam os netos, principalmente a Marina. Orgulho da família o avô que na juventude ganhara o apelido de Platão, por causa dos ombros largos.
“Do pó fui feito, somente do pó, Deus sabe! Barro animado, eis o que sou”, respondia, com aquela sua alegria senil dos oitenta e tantos anos, e um toque de falsa modéstia, elevando sua concepção a um “agir de Deus”, deixando a cópula e o árduo caminho dos espermatozoides embaixo do tapete. Uma desfeita, um disparate ao eu esperma que ela tinha sido em seu momento mais vívido.
“Como, meu Deus? Como e por quê? Um homem tão saudável... Tão forte, oitenta anos de rija alma em flácida, porém firme, carne? Morrer assim, dum espirro?! Atchim e depois tchibungue?!". Berrava a dona Das Dores em ocasião do enterro no cemitério de Santo Amaro.
Pois assim foi, porque assim teria de ser? Irrespondível. E não é a morte conditio sine qua non da vida, e a vida conditio sine qua non da morte? Morte e vida assim unidas, uma a uma, de um lado o riso bom e faminto duma alegria pueril e de outro o riso farto, bêbado e sarcástico da vida finda, contas a pagar, pagando-se?
“Quê é a morte? - Pergunta sem resposta!” ainda teria dito a Marininha pro namorado recém-chegado à família Gomes, apresentado ali mesmo, na frente da tumba enorme guardada por uma estátua de platos ombros representando a saúde de seu Carlos na hora derradeira.
“Pobre coitado, sem brio na morte!”, sussurrou impáfio o velho Bernardo, velho de idade e inimizade com o seu Carlos, ido ao enterro sem ser conhecido dos parentes do morto, convidou-se a si mesmo, promessa que tinha feito pra Nossa Senhora da Conceição, no morro dela, décadas atrás, e mesmo velho, lembrava-se bem: “Só morro, minha Nossa Senhora, quando ver enterrado o filho da raputenga do Carlos Gomes!”. Agora já tinha chegado à casa dos noventa. Apressou-se para sair do cemitério, ficaria de quarentena, afinal, já que a dádiva tinha sido dada, podia ter chegado a hora de pagar ele mesmo a promessa.
Pessoas choravam quando Alcides d'Albuquerque tomou a palavra para mostrar que era o melhor genro que o sogro dele podia ter, num discurso pro finado Carlos Gomes, avô de sua namorada nova, quem dera um avô dele também? Afinal, a morte não escolhe a porta que bate...
– O senhor Carlos de Lira Gomes se foi, é verdade, porém melhor é o lugar para onde vai, darão a ele hosanas merecidas, nas alturas do céu! Foi homem honesto, pai de família, criou todos os filhos relatando a criação de Deus e, pelo que sei, teria muito prazer em me conhecer – Enxugou uma lágrima solitária no rosto fino – nos abandonou, porém não órfãos. É fato que a família está aí, dando provas do amor com que o tinham. E além do mais, não é para se chorar... Morreu? Pois aqui devemos louvar sua vida! A quantos não matou para poder fecundar o útero, como todos nós? Pois então, louvemos o que de caro ele tinha em conta – a vida! E, no mais, Laus Deo!
As pessoas não esboçaram reações, as bocas ficaram abertas e o defunto ainda tentou dar um tabefe na cabeça do novo integrante da família, quem já se viu, falar de fecundação e de matança no seu enterro! “Um crápula esse rapaz, muito corajoso pra falar isso e não levar nada! Quem já viu, louvar a vida de alguém sem respeitar a tristeza da sua morte! Um crápula! E ainda esse negócio de espermatozoide! Jesus, Maria e José! E ainda quer imitar o padre com essa patuscada de latim, ara!” Sibilou a tia Mariquinha rodando a bengala no chão.
O padre reassumiu a reza. O silêncio imperava no cemitério, só alguns pássaros voavam pra lá e pra acolá, se divertiam festejando o morto. Havia ainda quem continuasse encarando, fuzilando com os olhos o Alcides d'Albuquerque, "esse tal namorado da Marininha", lembrou tia Mariquinha, e foi por isso que Marina depois pronunciou umas palavras, que reproduziremos aqui:
– Vovô era forte. E foi forte mesmo que se foi. Um espirro? Quem dera! Eu tinha falado pra ele antes, e ele não tinha acreditado! Mas o importante é que ele foi como Deus teria feito ele vir... No mais, morte e vida, vida e morte, que importa? A ordem dos fatores não altera o resultado! Bem disse o Alcides, vovô Carlos foi grande e devemos mesmo louvar a vida dele, o que ele nos deixou, mesmo agora, na hora de sua morte... E no mais, se se foi por um espirro, que dizer? Foi Deus quem quis assim! Deus seja louvado!
"Amém!", disseram muitos, agora concordes.
“É, bem razoável... Que menina essa, falou tudo!” Entusiasmou-se tia Mariquinha batendo palmas com todo mundo.
O Carlos Segundo, pai da Marina gostou muito de saber que aquele discurso que estava sendo aplaudido, de sua filha, tinha nascido, primeiro, na mente do genro. "É como dizia painho, - pensava ele - primeiro do barro Deus fez o homem, depois da costela, Deus fez a mulher, então louvo primeiro ao homem, louvo depois à mulher". E quanto ao tal Alcides, era um bom rapaz, tinha prestado a honrosa homenagem ao velho Carlos Gomes.
– Parabéns, amor, você falou muito bem. Disse Marina, depois, ao Alcides.
– Obrigado, amor, também achei. Mas obrigado também por ter salvo o meu discurso, o povo parecia não ter entendido! Mentes menores!
E beijaram-se em brinde ao sopro de vida que tinha ganho seu amor na casa dos Gomes.
O defunto quis fazer das tripas coração pra poder reencarnar, só pra dar um tabefe nesse presunçoso namorado de araque, mas recordou-se não ter mais tripas nem mesmo coração. “Parece até um ianque!”. Ouviu Gabriel, no céu, seu Carlos dizer.
*
* *

Alguns dias depois do funeral de seu Carlos, uns meninos duns tais Martins levavam a notícia a toda a família:
– Vovô Bernardo acaba de falecer... Deu um espirro enorme e sucumbiu dele mesmo. A maldita gripe aviária!
Os dois inimigos, mortos da mesma morte morrida, viraram amigos no céu e, satisfeitos com aquele desfecho, sopro de vida de sua própria amizade, deram hosanas à gripe aviária!
Laus Deo!







Autor: Mario Filipe Cavalcanti de Souza Santos
Contato: mario.filipe@ufpe.br
Blog: http://filipemario.wix.com/cadernoazul

Concurso: I Concurso Literário “Cidade das Asas” – Categoria Conto.- 2013
Organização: Secretaria Municipal de Cultura de Gavião Peixoto (SECULT) – São Paulo.
Classificação: Seleção para publicação

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