VIDA NO CAMPO I (Conto de Henrique Pontes)

Era um besouro.
Não eu, falo do besouro que entrou-me pela janela_ não, foi pela porta. Ela estava aberta. Entrou-me pela porta, atraído pela chama acesa de minha vela.
Era um pouco maior do que este que neste exato instante voeja em círculos à minha volta. Mais tarde o aniquilarei.
Por ora, bem.
Aquele besouro era enorme.
Um pouco maior, eu disse, mas a verdade é que era gigantesco, diria até pré-histórico.
E fazia tanto barulho com seu corpo que me levou à conclusão de que em breve teria de me levantar da cama para despachá-lo do quarto.
O que era incômodo demais para um besouro só.
Acontece que existem aqueles que exaltam a vida no campo, a vida próximo à natureza e às coisas belas e simples, mas a minha sincera opinião, a minha humilde e sincera opinião, e justa também, a minha justa, humilde e sincera opinião é esta, a dizer: a vida no campo é uma... (uma meada, segundo o que me quer fazer acreditar a correção automática de texto), exatamente porque acontecem extravagâncias naturais como esta.
Porque entrar vez em quando uma pequena vespa, uma mariposazinha anã, um vaga-lume, até mesmo um gafanhoto, atraídos por esta mesma fonte de calor e luz natural que é a chama de uma vela, isso lá é uma coisa; daí a entrar-me um monstrengo horrível com um par de antenas, não sei quantos pares de patas, e além disso acompanhado de um ruído vinte vezes desproporcional ao seu tamanho, isso sim, sem dúvida, é a (pauta_ novamente o corretor automático) que o pariu. Sem ofensa ao nobre leitor, naturalmente.
Mas o besouro. Era dantesco.
De tal modo que a gata, atraída pelo seu descomunal tamanho, achou que fosse um rato.
Não, estou enganado. Ela pouco se importava se tratasse de um rato de fato ou de qualquer outra nojentissezinha; tudo era objeto para seu instinto caçador.
Digo isto porque ela acabou de devorar aquele besouro menor do qual falei no início.
Então era isso. Esta depravada. Falarei dela mais tarde.
Por enquanto direi que ficou acompanhando o voo do besouro soberano, enquanto ele ficava se lançando contra as paredes ocas do meu quarto de taipa, como se quisesse morrer de besta. Verdade é que, e isso descobri mais tarde em algum livro sobre anatomia de insetos, os besouros não foram feitos para voar, sua estrutura não é aerodinâmica.
Ainda assim, vencendo todos os obstáculos da física e a despeito das advertências da ciência, além de demonstrar sem dúvida uma invejável obstinação e força de vontade, cá estamos diante de um besouro voador.
Mas isso, caros senhores, e quero que fique bem claro quando o digo, não diz nada em favor dos besouros. Nada.
Esta mesma sequência foi encenada um número inaceitável de vezes. Inaceitável pra quem, como eu, não tolera este tipo de manifestação nefanda da natureza dentro do próprio quarto. Meu cômodo aqui, a natureza lá fora, assim eu entendo as coisas.
Mas estava muito sonolento pra poder ditar as coisas, estas coisas, desta forma, e foi somente quando aquela pequena e defeituosa estrutura aerodinâmica acertou em cheio meu olho que me veio a raiva tão comum, este estado original em que costumo realizar as pequenas coisas, não aquelas, outras, este estado sem o qual pouco ânimo tenho para qualquer empreendimento. Havia risco das coisas acabarem em nível de calamidade privada.
Eu sairia seriamente ferido caso não começasse a fazer as coisas à minha maneira.
Apalpei o olho atingido; tudo em ordem. Olhei para lá e para cá; um ligeiro incômodo.
Ele pagaria caro.
Sentei na cama e perscrutei o espaço à cata daquilo que melhor serviria para estraçalhar aquele sujeito_ vejam lá como ele cresce na medida em que o descrevo e na proporção em que me causa desafetos, chegando quase à dimensão de outro sujeito como eu, no espaço _ Deliberei pela vassoura. Ensaiei alguns golpes no ar. Cheguei a nocauteá-lo, mas logo ele se recuperava, e eu não tinha tempo de virar a ponta do cabo a tempo de poder esmagar_ utilizava a parte com as farpas, usada para limpar o chão, e, no caso, inútil para meu intento, que naquele momento equivalia, senão à extinção de toda espécie de micro seres, ao menos à daquele espécimen em particular. Não que estivesse tomado de ira, absolutamente. Ainda não. Falo isso porque sou daqueles que não se podem deixar tomar pela ira facilmente.
A ira sempre traz para aqueles de minha natureza consequências gravíssimas.
Portanto todos estes meus gestos eram acompanhados de perto por uma fria e calculada calma.
Aconteceu por fim o desenlace. Finalmente, porque já me cansava de escrever _ eis que o besouro caiu-me em cima de uma blusa, sobre minha estante.
Relutantemente, mas compreendendo a importância e a natureza daquele sacrifício, envolvi com o fino algodão, fui novamente até a janela, por onde ele não entrou, e lancei com toda força para baixo.
Ouvi um pequeno, quase imperceptível, baque_ruído natural dos pequenos corpos que caem sobre a grama.
Um arrepio de prazer correu-me pelo corpo.
Fui me deitar. Puxei as cobertas.
A vela que eu havia acendido (só um toco) ameaçava extinguir_ prova do tempo absurdo que passei pra me livrar da incômoda matéria. Estava piorando com o passar dos anos.
Antes executava estas mesmas ações com mais lucidez e destreza.
Mas não deixei este pensamento me atormentar.
Respirei. Apanhei uma vela maior.
Ao entocá-la ao candelabro, fiz com muito ímpeto, e a cera quente que havia no fundo, deixada pela vela anterior, espargiu, atingindo-me o olho_ coincidentemente o mesmo que o besouro escolheu para se entrechocar como um retardado.
Fator estranho, mas nem por isso capaz de me tirar a tranquilidade recém-resgatada.
Sorri para a gata que agora também parecia sorrir para mim.
Tivera quatro filhotes, e todos por ora cochilavam agarrados às suas tetas.
O sono começou a retornar, me reconciliando com a vida dos bichos à minha volta.
Paz, a mais doce paz e o mais doce silêncio.
Um novo baque surdo, seguido de ruído. Não me inclinei para ver.
Apaguei a vela e me fechei num casulo de cobertas.







Autor: Henrique Pontes
Contato: henriquerishi@gmail.com

Concurso: Prêmio Cataratas - 2013
Organização: Fundação Cultural Foz do Iguaçu
Classificação: 9º Lugar

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