Seria uma homenagem ao pai. Debaixo da escada, cadeiras de vime cobertas por almofadas coloridas, tapetes de crochê branco e o aconchego de uma luz dispersa. Um abajur faz a cena. Nem nada, nem tudo, apenas um meio termo. Casara com ele, com medo de ficar solteira. Amor, amor mesmo não era. Na hora do sexo, então, nem se fala. Custavam para se entender. Desculpas! Adormecia, dores de cabeça, ouvido, garganta...sei lá, mais o quê. Ele se conformava, afinal, ela sim era o amor da vida dele. Meio bruto, meio amargo, meio sem laços. Amor à primeira vista. Sabia que ela vinha de outros braços. De outro amor. Mãe e pai odiavam o outro. Mas, ela, ela morria de amor por ele. Afinal cedeu aos pedidos da família. Naquele dia casaram na igreja, no cartório, festa, fotos, promessas, olhares, lágrimas. Estava enterrando o seu destino ao lado deste. Enfim....
Seria uma justa homenagem ao pai. Os filhos foram vindo: um, dois, três. Quem sabia até duvidava da paternidade, mas ela jurava que era fiel. Um parecia com ele, escrito, tal e qual. O outro ninguém sabia com quem. A garota era a mãe, muito igual, sem tirar nem por. Desvelo total pelos filhos. Pai dedicado, conversa aqui, conversa ali. Conselhos, a própria vida o ensinava. Afinal, família assim nunca tivera. Busca na discoteca, altas horas da noite. Leva ao colégio, ao inglês, à natação, a qualquer lugar. Estava sempre disposto. Mãe e pai se encaravam com cortesia, educação, boa vontade e amizade. Paixão mesmo, nem sinal.
Mas, o pai seria homenageado. O apartamento comprado com dificuldade, pequeno, com menos quartos do que seria desejável. O outro que ficara para trás se dá bem na vida...enriquece. Aparece na coluna social. Provoca, desfila com
carros importados. Bem feito. Ninguém mandou dar ouvidos à família. Tradição, acomodação, inveja. Viu no que deu??? Um dia mandou todo mundo prá aquele lugar. Discussão feia. Besteiras, acusações, lamentos. Mas, tudo continuou igual. Sem coragem de mudar nada. Só fala. Fazer que é bom. Nada...
O pai merecia uma homenagem. Começa a trabalhar fora. O orçamento doméstico grita. Falta isto, falta aquilo, cansada de tanto sacrifício. Sai de manhã e só volta de noite. Afinal, os filhos já não precisam tanto dela. E ele que se dane. Que se vire. Não dá muita bola prá ele não. Almoça sozinho, vê televisão sozinho, sai sozinho, fica na janela sozinho, sozinho, ele e ele. E ela demora, de propósito para voltar, conversa com um, conversa com outro. Janta com amigas. Em casa, ela só está bem tarde da noite!
Todos acham que o pai merece a homenagem. Mas, não discutem. Nem se agridem. Quase nem se olham. Ele vê, sente, deseja, convida, agrada. Ela ignora, abandona, repudia. Ele manda flores. Fazem 20 anos de casados. Ela não está quando as flores chegam. Ficam na escada. Ele desolado aguenta tudo. Não se lamenta. Mas, está difícil. Quase impossível! Faz promessa, vai à cartomante, pede ajuda aos santos. Tenta se renovar. Roupas novas, academia, corte de cabelo moderno. Ela nem nota.
Os filhos querem fazer a homenagem ao pai. Preparam, organizam, decidem, convidam a família. Ela ajuda, faz a sua parte, convida amigos, parentes, escolhe o jantar, o lugar, as músicas, as surpresas....mas por dentro está se lixando, é como se estivesse fazendo para um vizinho, sem envolvimento, sem paixão! O dia
chega...cabelo, unhas, olhos, boca, corpo. Vai lá, vai...aproveita e desfaz o mal entendido de uma vida inteira. Vai lá, vai...toma coragem e se abre, que isso te deixa doente. Você merece uma felicidade...uma alegria....um amor de verdade. Vai lá, vai...ninguém vai te dar uma outra vida prá você viver de novo. Esta é a única e você não aproveitou. Viveu de mentira...amou de mentira...foi feliz sendo infeliz, foi amada sem conseguir amar....E ela foi. No caminho, longo e sofrido, antes de chegar à homenagem dos 50 anos do marido, ela pensou...pensou muito.
O salão de festas cheio de convidados, os filhos radiantes pela homenagem ao pai...os amigos que ela não via há muitos anos. Tantos que ela nem lembrava quantos. Amigos envelhecidos, diferentes, o tempo é cruel, dizia um. O outro transfigurara-se pela ação dos dias. A amiga e vizinha de infância parecia sua mãe. E ela não se via ao espelho??? Conservara em si a imagem dos dezoito anos...só os outros a viam mais velha. Vai ao banheiro, olha-se demoradamente. Batem na porta...você está bem??? Não...não está bem. Em que espelho ficou perdido a minha face? Continuam batendo na porta. Fala alguma coisa...você está bem??? Estou...estou....o espelho embaça pela proximidade. E ela sufoca, o ar torna-se pesado, irrespirável, ela desabotoa a blusa, abre e a arranca do corpo, a calça acinturada também sufoca, sacode os pés para tirar as sandálias, tira a calça e toda a roupa que a aprisiona. Fica nua, totalmente nua. Seu desejo era ficar nua de corpo e de alma. O olhar no espelho a assusta. É o de uma louca, sem medida, sem pudor, sem vergonha. Abre a porta do banheiro e sai.
A homenagem ao pai está no auge. Alguns dançam, outros comem, outros bebem, uns observam, outros confabulam, outros invejam....realmente a festa surpresa de Carlos está perfeita. E Ana Lúcia, voltando do banheiro, caminha em direção ao bolo. É hora do parabéns...prá você, nesta data, querida, muitas felicidades, muitos anos de vida. Ela vai em direção ao marido e o abraça, E Ana Lúcia o beija. Pela primeira vez na vida de casado, ela toma a iniciativa de um beijo.
Carlos fica, profundamente, incomodado com isto. No meio de tanta gente??? Ali...num salão de festas...ela resolve beijá-lo?? E, os vinte anos de casados?? E as noites de solidão??? E as lágrimas de desamor??? E o desejo reprimido? E o vazio....? Olha ao redor, como se nunca tivesse visto aqueles que ali estão. Ana Lúcia? Uma desconhecida....! Um raio de lucidez o acomete e, despertando de um sonho ou de um pesadelo, cai na real. Não havia mais o que pensar. Não havia mais o que esperar. Nem o que sonhar. Não havia mais, nem menos. Nem mais um dia, nem mais um mês, nem mais um ano. Nem mais uma vida inteira. Vira-se em direção à porta e sem olhar para trás, ele sai. Para nunca mais voltar!!! Parabéns prá você nesta data querida....!!!!
Autora: Albina Morais Cordella
Contato: albina@cordella.com.br
Concurso: Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro - 2009
Organização: Editora Via Literária
Classificação: 1º Lugar
Seria uma justa homenagem ao pai. Os filhos foram vindo: um, dois, três. Quem sabia até duvidava da paternidade, mas ela jurava que era fiel. Um parecia com ele, escrito, tal e qual. O outro ninguém sabia com quem. A garota era a mãe, muito igual, sem tirar nem por. Desvelo total pelos filhos. Pai dedicado, conversa aqui, conversa ali. Conselhos, a própria vida o ensinava. Afinal, família assim nunca tivera. Busca na discoteca, altas horas da noite. Leva ao colégio, ao inglês, à natação, a qualquer lugar. Estava sempre disposto. Mãe e pai se encaravam com cortesia, educação, boa vontade e amizade. Paixão mesmo, nem sinal.
Mas, o pai seria homenageado. O apartamento comprado com dificuldade, pequeno, com menos quartos do que seria desejável. O outro que ficara para trás se dá bem na vida...enriquece. Aparece na coluna social. Provoca, desfila com
carros importados. Bem feito. Ninguém mandou dar ouvidos à família. Tradição, acomodação, inveja. Viu no que deu??? Um dia mandou todo mundo prá aquele lugar. Discussão feia. Besteiras, acusações, lamentos. Mas, tudo continuou igual. Sem coragem de mudar nada. Só fala. Fazer que é bom. Nada...
O pai merecia uma homenagem. Começa a trabalhar fora. O orçamento doméstico grita. Falta isto, falta aquilo, cansada de tanto sacrifício. Sai de manhã e só volta de noite. Afinal, os filhos já não precisam tanto dela. E ele que se dane. Que se vire. Não dá muita bola prá ele não. Almoça sozinho, vê televisão sozinho, sai sozinho, fica na janela sozinho, sozinho, ele e ele. E ela demora, de propósito para voltar, conversa com um, conversa com outro. Janta com amigas. Em casa, ela só está bem tarde da noite!
Todos acham que o pai merece a homenagem. Mas, não discutem. Nem se agridem. Quase nem se olham. Ele vê, sente, deseja, convida, agrada. Ela ignora, abandona, repudia. Ele manda flores. Fazem 20 anos de casados. Ela não está quando as flores chegam. Ficam na escada. Ele desolado aguenta tudo. Não se lamenta. Mas, está difícil. Quase impossível! Faz promessa, vai à cartomante, pede ajuda aos santos. Tenta se renovar. Roupas novas, academia, corte de cabelo moderno. Ela nem nota.
Os filhos querem fazer a homenagem ao pai. Preparam, organizam, decidem, convidam a família. Ela ajuda, faz a sua parte, convida amigos, parentes, escolhe o jantar, o lugar, as músicas, as surpresas....mas por dentro está se lixando, é como se estivesse fazendo para um vizinho, sem envolvimento, sem paixão! O dia
chega...cabelo, unhas, olhos, boca, corpo. Vai lá, vai...aproveita e desfaz o mal entendido de uma vida inteira. Vai lá, vai...toma coragem e se abre, que isso te deixa doente. Você merece uma felicidade...uma alegria....um amor de verdade. Vai lá, vai...ninguém vai te dar uma outra vida prá você viver de novo. Esta é a única e você não aproveitou. Viveu de mentira...amou de mentira...foi feliz sendo infeliz, foi amada sem conseguir amar....E ela foi. No caminho, longo e sofrido, antes de chegar à homenagem dos 50 anos do marido, ela pensou...pensou muito.
O salão de festas cheio de convidados, os filhos radiantes pela homenagem ao pai...os amigos que ela não via há muitos anos. Tantos que ela nem lembrava quantos. Amigos envelhecidos, diferentes, o tempo é cruel, dizia um. O outro transfigurara-se pela ação dos dias. A amiga e vizinha de infância parecia sua mãe. E ela não se via ao espelho??? Conservara em si a imagem dos dezoito anos...só os outros a viam mais velha. Vai ao banheiro, olha-se demoradamente. Batem na porta...você está bem??? Não...não está bem. Em que espelho ficou perdido a minha face? Continuam batendo na porta. Fala alguma coisa...você está bem??? Estou...estou....o espelho embaça pela proximidade. E ela sufoca, o ar torna-se pesado, irrespirável, ela desabotoa a blusa, abre e a arranca do corpo, a calça acinturada também sufoca, sacode os pés para tirar as sandálias, tira a calça e toda a roupa que a aprisiona. Fica nua, totalmente nua. Seu desejo era ficar nua de corpo e de alma. O olhar no espelho a assusta. É o de uma louca, sem medida, sem pudor, sem vergonha. Abre a porta do banheiro e sai.
A homenagem ao pai está no auge. Alguns dançam, outros comem, outros bebem, uns observam, outros confabulam, outros invejam....realmente a festa surpresa de Carlos está perfeita. E Ana Lúcia, voltando do banheiro, caminha em direção ao bolo. É hora do parabéns...prá você, nesta data, querida, muitas felicidades, muitos anos de vida. Ela vai em direção ao marido e o abraça, E Ana Lúcia o beija. Pela primeira vez na vida de casado, ela toma a iniciativa de um beijo.
Carlos fica, profundamente, incomodado com isto. No meio de tanta gente??? Ali...num salão de festas...ela resolve beijá-lo?? E, os vinte anos de casados?? E as noites de solidão??? E as lágrimas de desamor??? E o desejo reprimido? E o vazio....? Olha ao redor, como se nunca tivesse visto aqueles que ali estão. Ana Lúcia? Uma desconhecida....! Um raio de lucidez o acomete e, despertando de um sonho ou de um pesadelo, cai na real. Não havia mais o que pensar. Não havia mais o que esperar. Nem o que sonhar. Não havia mais, nem menos. Nem mais um dia, nem mais um mês, nem mais um ano. Nem mais uma vida inteira. Vira-se em direção à porta e sem olhar para trás, ele sai. Para nunca mais voltar!!! Parabéns prá você nesta data querida....!!!!
Autora: Albina Morais Cordella
Contato: albina@cordella.com.br
Concurso: Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro - 2009
Organização: Editora Via Literária
Classificação: 1º Lugar
Incrível como essas coisas, por mais absurdas que possam parecer a quem jamais as vivenciou, possam realmente acontecer. Mistérios da mente que aprisionam as pessoas dentro de si mesmas...
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