ILUMINURAS (Conto de Henrique Pontes (rishi) )

(eventos descritos no dia do apagão de Itaipu, 11/2009)

I
Batem à minha porta.
A porta. Ela não é minha, que fique bem entendido.
Não é minha, porque não me chamam pelo nome.
Chamam pelo nome de Linda. Deve ser o nome da porta.
Eles batem. Chegam a esmurrar, sem maiores êxitos.
E temo que um dia a porta acorde e saia enraivecida pelo corredor.
Mas as coisas não se emocionam com socos.
Por via das dúvidas, respondo sempre que não há nenhuma “linda” em casa.
Mas eles continuam vindo. Sempre. Eles são muitos. Eu disse muitos.
Ou seja, é mais que um. Sem dúvida não menos que dois.
A começar pela família. Irmãos, irmã, mães. Ou deve ser uma mãe e uma madrasta.
Só o pai não vem. Ou morreu, ou deve ser desses muito ocupados em seus escritórios.
No fim dá no mesmo.
Mas também já veio um senhor para oferecer ajuda com o meu jardim. Não abri.
Perguntei de dentro “Que jardim?” _ “Este decrépito bem atrás de mim.”, ele respondeu.
Deixei-o falando sozinho.
Fui contar a novidade à minha mulher. “Querida, nós temos um jardim!”.
Ela não se comoveu.
Um dia foi atender sozinha à porta e anunciou a chegada de uma pessoa.
“Uma pessoa?” _ perguntei horrorizado, “enxote-a daqui! Mande-a embora.
Daqui a pouco serão mais de uma, e então poderão se multiplicar!”
Mas isso não é o pior. Não para mim pelo menos. É como se eu não existisse.
Ninguém me chama pelo nome. Por essa razão, resolvi mudá-lo.
Ademais, já havia mesmo esquecido o original. Dei-me então um nome todo especial.
Diferente do primeiro, é claro, a ver se começavam a procurar por mim.
Não vou dizer qual era esse nome porque tenho muita vergonha.
No fim não serviu de nada e é duro ser chamado por um nome assim.

II
Sempre batem quando estou dormindo. Em que estamos; minha mulher e eu.
Pois devo citar minha mulher, ainda que ela esteja sempre dormindo.
Nós dormimos muito. Até porque não há muito que fazer nesta casa pequena.
Andamos do espaço do quarto até a porta, e depois retornamos, para dormir.
A caminhada ajuda a fortalecer as pernas.
Trata-se de andar o menos depressa possível para o tempo passar mais rápido.
De resto não me culpo de não fazer mais nada.
Sou um cara bacana, gosto de sentar à varanda, as pernas cruzadas na cadeira,
e observar a poeira assentada dos séculos.
Com um cigarro na mão, um gole de café e um pouco de mingau de aveia. Nu.
Que gosto mesmo é de brisa nas partes.

III
Não consigo me decidir entre uma coisa e outra a ser feita. São tantas, quando olhamos.
O vento é tão curto. Paro e fico pensando:
o Presidente dos Estados Unidos, Alexandre, O Grande, Buda, Maomé.
Todos em seu momento de não fazer nada. Todos possuem este instante.
Quão grandioso não deve ser nesses homens. Olhando para frente, em silêncio.
Não fazer nada é a restituição salutar do caráter.
Existe toda uma filosofia do “far niente”.
Abismo de espadas, onde só os guerreiros penetram. Karmayoga.
Tenho prazer em matar os dias, assim. No meu calendário faço um risco bem grande.
Um rápido corte com a caneta, em posição de samurai. Corto o dia.
Meu calendário é cheio desses cortes. Estou ficando bom.
Eles quase todos seguem a mesma risca.
Serei pioneiro da modalidade, nas próximas Olimpíadas.

IV
Não vou dizer que não temos dinheiro. Temos numa caixinha uma nota de um dólar.
Com cumplicidade olhamos a foto do presidente estampada. Um salvador.
Perguntamos a mesma coisa um para o outro:_O que faremos em caso de urgência? “Pegamos um ônibus”, ela respondeu convicta. E isso resolveu o assunto.
Recebemos uma ligação neste dia. Era da loja do mercado cooperativista.
Ofereciam quarenta mil caso um de nós viesse a falecer. Uma série de outras vantagens
_ seguro de saúde, entre outros.
Porém, éramos obrigados a pagar a taxa. Custava muito mais que um dólar.
Perguntei; mas se eu não quiser as vantagens? A taxa é obrigatória, responderam.
Pensei que talvez pudesse pular de um prédio.
Mas minha mulher não quer se encrencar com a polícia.

Nós fazemos coleção de selinhos da locadora. Um dia conseguiremos um filme grátis.
Então, redimiremos toda a conta que viemos pendurando.

V
Cortaram a nossa água. Foi minha mulher que disse.
Fiquei espantado com o que pode fazer a tecnologia nos dias de hoje.
“Deve ser um tremendo engenho esse de cortar água!”.
_Era uma parte do encanamento que havia quebrado.
As pessoas olham para nós e dizem; coitados deles! Eu, que irei fazer?
Eu diria o mesmo, mas essas pessoas acham que são melhores.

VI
Não foi assim quando acabou a energia. Aquele blackout numa dúzia de Estados.
Eu gosto, porque tenho razão para ficar à luz de velas.
Minha vida pareceu mudada num instante.
Instalou-se uma nova espécie de ordem, na penumbra.
Tudo assumia um risco de outras possibilidades. Até comer ficava mais gostoso.
Me sentia um homem das cavernas. Foi quando me veio uma vontade de sair.
Então me assustei. Todos estavam na rua.
E o fato de saírem todos assim pela mesma razão logo me fez perceber:
nunca havíamos nos encontrado de fato, não nos conhecíamos, vizinhos que fôssemos.
Podia pela primeira vez caminhar entre aquela gente.
Éramos todos, em uma dúzia de Estados, homens em frente ao abismo. Sorri.
Ao lutarmos pela mesma coisa, adquirimos outra identidade como multidão.
Preguei-me ali até a última alma voltar pra casa e se conformar com a escuridão.
No dia seguinte, novamente todos achariam que éramos diferentes.







Autor: Henrique Pontes (rishi)
Contato: henriquerishi@gmail.com
Blog: http://manufatura.blogspot.com

Concurso: Concurso de Contos do SESC-AM - 2011
Organização: SESC Amazonas
Classificação: 2º lugar

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