ARTE E VIDA SEVERINA (Crônica de Tarlei Martins Ferreira)


     Quando nasceu, um anjo baldio desses que fingem brincar de Deus disse: vai, menino, ser feliz na vida! E ele foi! Desde então vem ele bordando no tecido do tempo sua arte e vida severina. É possível que ele siga as linhas invisíveis do risco de um bordado previamente traçado. Ele pouco sabe. Desconfia apenas de sua sina de tecelão e, graças a ela, entrega-se ao ofício de tramar os fios da vida. Enquanto isso, o tempo, um senhor tão bonito, brinca ao redor do caminho daquele menino.
     Lá está ele, menino-criança, entregue às experiências inaugurais, aquelas que pavimentam o chão da memória com pedrinhas de brilhante. É o tempo dos primeiros encantamentos, das primeiras descobertas, dos primeiros sustos, das primeiras letras, da alegria da vida solta, da revoada de primos da mesma idade, das frutas colhidas no pé, do pé no chão. É o tempo da vida miúda na miúda Buriti Alegre, pequenino lugarejo encantado, beira-planalto, nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico! É o tempo do abandono do pai. Havia no pai um desejo de rio – e o pai se deixou navegar errante pelas correntezas até aportar numa terceira margem.
     Um pouco mais, já é um menino-adolescente, entregue aos sonhos impossíveis, aqueles que insistem em povoar o casulo da imaginação. É o tempo dos primeiros conflitos, dos desconfortos com um crescer estabanado, do maravilhamento com as surpresas do corpo, dos primeiros tremores do coração. É o tempo da busca de um norte. Havia no menino um desejo de barco – mas seu coração era bússola desnorteada e o menino aprisionava-se na insegurança e na indecisão.
     Mais adiante e ei-lo menino-rapaz, entregue aos sonhos possíveis, aqueles que migraram do casulo da imaginação para o palco da ação. É o tempo do desassossego, do sobressalto, da mudança para uma cidade nova, do desafio do vestibular, da descoberta da leitura, do encantamento diante de tudo que leva a assinatura da imaginação, do mergulho na arte (a arte que sustenta a vida real). É o tempo das grandes dificuldades, dos grandes medos, das grandes incertezas. É o tempo de uma conquista fundamental – o ingresso no Banco do Brasil. É o tempo de uma tranqüilidade financeira inédita para um menino que, junto com a mãe e dois irmãos, vinha cumprindo, sem amargura, sem revolta, o estatuto civil da pobreza. É hora de dizer que havia na mãe um desejo de raiz – e a mãe fez o que pôde para manter seus frutos ao abrigo de sua árvore.
     Ali na curva dos trinta, menino-homem, está ele entregue a uma paixão com contornos de para sempre, daquelas que parecem decretar o início, o fim e o meio. É o tempo de sedimentar conquistas, de se apegar mais ainda à vida e seu incessante cortejo de dor e delícia, de acreditar que nas dobras do ordinário pode estar o extraordinário. É o tempo de ensaiar mais um vôo. Havia no menino um desejo de asas – e ele acabou pousando numa das asas de Brasília, o seu sonho feliz de cidade, de onde só pensa voar rumo ao derradeiro pouso.
     Agora, para sempre homenino, está ele entregue à travessia da casa dos quarenta, inteiramente despreocupado com o final dessa travessia. É o tempo da vida tranqüila, da paixão que virou uma amizade mais que amorosa, da calmaria de quem quer muito pouco. É o tempo de apreciar a vida se vivendo nele e ao redor dele. Há sempre no homenino um desejo de vela – e ele cuida de manter seu barco o mais possível na rota dos ventos favoráveis.
     Mas quem é esse menino? É um menino do Brasil que se confunde com outros tantos meninos severinos, iguais em tudo na vida, iguais em tudo e na sina. É um menino brasileiro que não se cansa de ter a esperança de um dia ser tudo o que quer.







Autor: Tarlei Martins Ferreira
Blog: www.artevida.blog.br

Concurso: VII Concurso Rubem Braga de Crônicas - 2012
Organização: Academia Cachoeirense de Letras
Classificação: Destaque

11 comentários:

  1. Quanta beleza em suas palavras... PARABÉNS!
    Gostei muito do seu texto e gostaria de saber se posso levá-lo para meus alunos da escola em que trabalho. Aguardo retorno.
    QUE JESUS continue o abençoando...
    Com carinho abraços da amiga. Rosângela Dias Santos (Buriti Alegre/GO)

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    1. Oi, Rosângela!
      Obrigado pelas palavras!
      Fique à vontade para usar o texto. Ele já não é mais meu.
      Abs,
      Tarlei

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    2. Tarlei,

      É uma grande honra para nós buritialegrenses poder usar um texto de uma pessoa tão iluminada. Vou levá-lo pras salas de aulas que um dia você também estudou. Hoje trabalho na mesma escola que um dia estudamos. O Colégio Padre Nestor Maranhão Arzola na pequena cidade de Buriti Alegre - Goiás. Fico feliz pelas suas conquistas, habilidades e competências que desenvolveu.Quantos buritialegrenses se perderam daquela época até agora! Sei que não foi fácil, mas é aquele velho ditado, quem planta, um dia colhe. Escolhi um trabalho que infelizmente, mesmo depois de quatro décadas de vida ainda não posso ter o privilégio de colocar muitos sonhos em prática. Falta muito, falta até tempo pra ler, escrever,visitar os amigos(as)... falta principalmente "tranquilidade financeira" na carreira de professora. Mas,agradecida pelas lutas e conquistas, quero contar um pouquinho do malabarismo e alegrias que a vida me proporcionou.Abraços da amiga Rosângela Aparecida Dias A Santos

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    3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    4. Rosângela,

      agora quem ficou emocionado fui eu. O chão da infância é um chão fecundo que enche minha memória de saudades.

      Queria que você lesse a homenagem que fiz aos professores. É só pôr no Google "blog do tarlei martins meu professor inesquecível". É o primeiro resultado.

      Abs,
      Tarlei

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  2. Tarlei me emocionei ao ler esse belo texto! Parabéns!

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    1. Obrigado pelo comentário, Roseli! É, a crônica tem mesmo uma pegada de emoção. O melhor prêmio pra quem escreve é saber que um texto seu provocou emoção.

      Abs,
      Tarlei

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  3. Uau! Bem merecido esse prêmio!Homenino,você vai longe!

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    1. Angela,
      já disse em algum lugar do meu puxadinho que sou pássaro de voo curto. Não sei voar para longe de mim mesmo.
      Obrigado pelo comentário!
      Abs,
      Tarlei

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  4. Muito querido Tarlei, PA-RA-BÉNS!!!
    Este CHÃO DE ESTRELAS em que vc habita ainda nos oferecerá muitos outros belos frutos literários. Beijos em seu coração. Sua fã, Edna.

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    1. Querida Edna,
      palavras assim tão generosas é que salpicam de estrelas o chão da minha vida.
      Obrigado!
      Abs,
      Tarlei

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