EXISTÊNCIA (Conto de Rodrigo Zafra)

Quando percebo, já estou arfando. Puxo o ar com força para os pulmões à medida que tento controlar o ritmo do batimento cardíaco. As mãos úmidas e uma leve vertigem acabam de dar as boas-vindas para uma nova crise de ansiedade. No início, eram esporádicas; agora, uma ou duas vezes ao dia.

Me apoio sobre a bancada de mármore da pia e pego um copo com água. Nesse momento, minha mãe entra na cozinha e dá um bom dia sem me olhar. Respondo e saio rapidamente em direção ao meu quarto. Não quero que ela perceba meu estado, ainda mais depois da briga que tivemos ontem a noite. Aliás, depois dela ter vindo à minha casa de surpresa, com duas pequenas malas, a fim de se hospedar por alguns dias para realizar exames médicos mais elaborados, segundo ela, sem me dar maiores detalhes. Não gosto desse clima de suspense. E não quero mais ninguém dando palpite na minha vida.

Remexo meu armário e, debaixo de várias pastas de documentos antigos, pego meu remédio tarja preta. Deito na cama para esperar o efeito tranquilizador, mas os barulhos do quarto ao lado não me deixam descansar. Sei que ela faz isso só para me testar, me desafiar, e ela consegue por muitas vezes me tirar do sério. Mas hoje, não. Preciso ficar bem para resolver minha vida – pelo menos, parte dela. E ela sabe. Pode não compreender totalmente, nessa fase de adolescente rebelde que vê na própria mãe uma rival a duelar, mas está absolutamente informada que a sua – a nossa – vida pode ficar muito difícil depois de hoje, mas ela se supera colocando um punk rock na maior das alturas, e não me deixa escolha.

Soco a porta com força. Em alguns segundos a música para, mas ela não abre a porta. Chamo-a pelo nome, mas nada – como sempre. Minha mãe vem ver o que está acontecendo. Desisto. Não preciso de plateia para lidar – ou tentar lidar – com a minha própria filha. Volto para a cozinha espumando de raiva, sento à mesa e me sirvo com qualquer coisa que consigo encontrar. Minha mãe vem logo em seguida. De canto de olho, percebo que ela me observa. Quer me dar algum conselho sobre como lidar com minha filha. Então continuo inatingível, e ela parece se contentar.

Marina não demora muito para aparecer, com aquele jeito de quem tem todas as respostas para minhas possíveis perguntas na ponta da língua. Sinto-me agitada, quero falar, mas resisto. Preciso manter a calma, o dia está apenas começando. Marina percebe o clima tenso à mesa e passa a exibir seu irritante ar triunfal. Minha mãe sempre me diz que eu era igualzinha a minha filha, que não posso me queixar. Enquanto come com uma mão, com a outra Marina digita freneticamente as teclas de seu celular. Odeio esse comportamento à mesa, então fixo-lhe o olhar. Ela retribui, sem deixar de digitar.

Minha mãe se levanta e lava sua louça. Marina rapidamente acaba seu café e deixa a louça com a avó, dizendo estar atrasada. Uma estratégia para não ter que me encarar sozinha. Mas tudo bem, ela não me escapa. Levanto e deixo tudo como está. Digo para minha mãe não se preocupar, pois preciso sair e, quando voltar, termino tudo. Ela diz que tudo bem, mas acho que tem algo mais a dizer. Fico com essa impressão, mas como ela volta para seu afazer, não a indago. Quando saio, me pego pensando se não tive com a minha mãe a mesma atitude que Marina teve comigo – fugir. Assim como antes, deixo a pergunta no ar. Tenho questões mais urgentes para resolver.

Faço compras no supermercado para um almoço caseiro. Em seguida, passo uma dezena de minutos sentada em meu carro, suando mesmo com o ar-condicionado ligado na toda, tentando decidir se devo me arriscar. Um dia, jurei que não procuraria mais essa válvula de escape, que não precisava mais, mas hoje estou confusa, perdida, e um monte de certezas que cercavam minha vida se esvaíram. Então tomo a decisão. Depois de meia hora, chego a uma rua de mão dupla pouco movimentada. Avisto de longe um grupo de meninos e chego com o carro próximo deles. Um vem em minha direção e fica me olhando. Mostro o dinheiro. Ele tira dois papelotes do bolso e me entrega. Quando viro a esquina e já estou no meio do trânsito pesado da manhã, minhas pernas tremem, e a sensação de culpa se alastra pelo meu corpo.

Em casa, vejo que estou sozinha. Minha mãe deixou um bilhete dizendo que tem exames e só deve voltar a noite. Me sinto um pouco aliviada, pois Marina ficou de passar a tarde depois da escola na casa de uma amiga, e assim vou ter o tempo todo só para mim e Pedro. Mas quando penso em como será aquela tentativa de reconciliação, sinto o estômago embrulhar e os primeiros sintomas de uma nova crise de ansiedade aflorar. Abro a bolsa e pego os papelotes. Uso um deles e deito no sofá para relaxar. O efeito é quase imediato.

Já são quase meio-dia quando saio daquele torpor e me dou conta de que não preparei nada. Pedro vem para o almoço. Tento ligar para o seu celular, para lhe pedir que não chegue tão rápido, mas só cai em caixa postal. Deve estar preso em alguma reunião, ocupado como é. Em pouco mais de uma hora termino de preparar a lasanha e já a vejo quase pronta no forno. Do freezer para a geladeira, o vinho tinto está quase no ponto. Ligo outras vezes para Pedro, sem novidade. Observo a movimentação na rua – nenhum sinal
dele.

As horas passam rapidamente e, nelas, estou sozinha. A mesa, pronta à minha frente, é uma triste lembrança de um passado bem próximo, que eu quase havia me esquecido. Não deveria me decepcionar com Pedro. Sei como ele é, como funciona sua vida, mas a frustração toma conta de mim. Eu o amo... ainda o amo. Só espero que essa não seja mais uma das outras tantas certezas da minha vida que cairá por terra. Não como nem faço outra coisa. Apenas espero.

No sonho, alguém me diz que estou em perigo e preciso fugir do meu esconderijo. Sei que minha mãe foi pega pelos perseguidores. Batidas fortes e secas me deixam em pânico. Acordo assustada e percebo que o barulho é de alguém batendo à porta. O celular toca em seguida. É Pedro. Abro a porta e ele vai logo se desculpando pelo fenomenal atraso. Minto, dizendo para não se preocupar e pergunto se está com fome. Ele diz que já comeu, e mais uma vez pede desculpas ao dizer que precisamos ser rápidos em nossa “reunião”. Fiz planos tão diferentes para aquele encontro...

Pedro liga seu ipad e me mostra uma lista de divisão de bens que ele criou. Pondera sua decisão item por item, e, em certo ponto, desligo de sua fala burocrática. Apenas o observo, tentando encontrar – como em todos os outros dias após nossa separação – o motivo que nos desuniu. O que aconteceu com a gente?, pergunto. Pedro ainda fala mas não conclui a frase, me olhando sem entender. Por que nós chegamos nesse ponto?, insisto.
Ficamos, por um tempo, calados. Talvez a gente tenha esquecido de funcionar como um casal... Eu vivi só a minha vida, e você viveu só a sua... Acho que a gente esqueceu de olhar para a nossa relação, surpreende-me a forma crua e verdadeira de Pedro falar. A sua maturidade. O seu rosto, apontando que, aquele, é um caminho sem volta.

O telefone de Pedro toca. Ele pede licença para atender e vai para a cozinha. Fico na sala, sentada no sofá, sem reação. Penso e não encontro nada que possa fazer para tentar mudar a ideia de Pedro. Nada que não me pareça extremamente fora de contexto diante da postura dele. Quando o telefone de casa toca, demoro a entender o que se passa. Do outro lado da linha, a secretária da clínica em que minha mãe vem fazendo exames pergunta por ela. O por que dela não ter comparecido para a bateria de exames que estavam programados para aquele dia. Algo está errado.

Pedro volta da cozinha e pergunta se não me importo se ficarmos de combinar um dia mais calmo para nossa conversa. Digo que tudo bem, que preciso resolver um problema, e nos despedimos.

Entro no quarto da minha mãe e procuro onde ela guardou os exames. Assim como eu, ela procura esconder aquilo que não quer mostrar ou falar. E eu entendo o porquê. Me sinto mal ao ler os resultados. Um misto de arrependimento, raiva, pena, medo... Ela sabe que vai morrer logo, pois o seu câncer evolui rapidamente. Compreendo o motivo dela estar deixando de fazer os outros procedimentos. Mas, por que ela não quer conversar comigo sobre isso? Por que passar sozinha por esse momento? Eu não deveria ter entrado em sua privacidade, mas... que se dane, ela é minha mãe. Eu tenho o direito de saber... acho que tenho o direito, sim.

Minha mãe e Marina chegam juntas no início da noite. Será que Marina sabe da doença da avó? Essa e outras perguntas surgem enquanto observo as duas rindo e conversando alto, colocando os pacotes das compras que fizeram sobre a pia. Minha vontade é de entrar naquela cozinha e acabar com aquele momento feliz. Onde elas veem alegria, afinal?... Mas me contenho, sabendo que até mesmo a minha presença só irá atrapalhar o relacionamento entre as duas. Se minha mãe está superando – ou, ao que parece, esquecendo um pouco – seu problema, vou respeitar sua decisão e aguardar que, um dia, ela confie em mim.

Vou para o quarto, deito na cama e fico, por um tempo, ouvindo os sons agradáveis que se projetam da cozinha. Do lado de fora, a algazarra orquestrada do início de noite – das crianças saindo da escola, das pessoas conversando, seguindo suas rotinas da volta do trabalho, do ronco dos motores dos carros em movimento... os sons da vida seguindo, enfim. Lembro, então, que ainda tenho mais um papelote. Mais uma vez a culpa me consome... mas preciso desligar um pouco, relaxar. Tive um dia cheio, totalmente fora do planejado, e as descobertas que fiz não foram nada boas.

Depois de um tempo, os problemas se desintegram, e uma frase surge num fluxo: Viver é para poucos, a maioria apenas sobrevive. Sozinha na minha redoma, constato – acho que me enquadro no segundo caso.







Autor: Rodrigo Zafra
Contato: zafra09@hotmail.com
Blog: http://rodrigozafra.blogspot.com


Concurso: 2º Concurso de Contos “Cidade de Lins” - 2012
Organização: Prefeitura Municipal de Lins
Classificação: 5º lugar

Um comentário:

  1. Contaço, participei desse concurso e nada consegui. Agora vejo o porquê. Esse conto ficou em quinto lugar, imagino o primeiro.

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