CAPITOLIUM (Conto de Cristina Bresser)

tropeço num paralelepípedo. me deparo com um livro aberto, estatelado no chão. volume ensebado, orelhas retorcidas. apanho o livro e sou surpreendida por dois olhos injetados a me encarar.
assustada, solto um quem é você?
maria capitolina!
sento no chão e agarrando o livro escancarado, murmuro: continua, por favor.
nasci calma e delicada e fui presenteada com este nome. minha mãe deve ter tido dores de parto excruciantes para se vingar de mim desse jeito. ou terá sido ideia do meu pai? complexo de gente pobre que na falta de um “pedigree” adequado, compensa seus rebentos com nomes esdrúxulos. ele dizia que era homenagem à loba que amamentou rôomulo e remo no capitolium. pouco importa, eu sempre detestei meu nome.
meu consolo era uma menina que morava na rua de trás. ela se chamava policena aquilina, coitada. heroína homérica, quem sabe? a irmã dela, favorita da mãe, chamava-se josephina. e olha que era família abastada, o pai era juiz de direito. já eu...ela se tornou poli, a menina mais corajosa e contestadora do bairro. soube depois que tinha se formado em medicina. a irmã virou a “madrinha fina”, tia solteirona que mimava os afilhados com seu parco salário de funcionária pública.
eu fui desde sempre tímida e discreta. julgada por alguns como cínica e dissimulada. tornei-me capitu, dos olhos de ressaca. não lembro como adquiri este “sobrenome”, mas quem me apelidou me conhece. intimamente.
ressaca, sim, daquelas bravas do mar. violenta e ensurdecedora. ondas enormes quebrando-se contra as muretas da praia, carregando o que encontra pela frente, invadindo a terra, limpando, transformando e destruindo tudo aquilo que não tem base sólida. esta sou eu. a ressaca por detrás dos meus olhos só é percebida por poucos privilegiados. estes conhecem minha alma. será que alguém sabe como me sinto?
quando foi que bentinho deixou de ser meu melhor amigo, companheiro inseparável, para se tornar este marido ciumento e desconfiado? um homem cinza, assim o vejo atualmente. espectro amargo, quase um casmurro!
não me recordo o dia exato que acordei ao lado deste estranho numa cama fria, num quarto escuro numa casa que há muito deixara de ser um lar. quem sabe bento santiago teria sido menos infeliz na vida monástica, como dona glória havia prometido quando lhe deu à luz. toda esta tragédia é no fundo culpa dela.
sogras! tentar enganar à deus? se ela tivesse cumprido a promessa à risca, quem sabe nossas histórias teriam sido menos desastrosas.
hoje talvez eu fosse casada com escobar. se o destino fosse menos sarcástico, envelheceríamos juntos. ele continuaria nadando em mares agitados como sempre lhe aprouvera. e eu não teria essa alcunha sombria. hoje faço jus a ela. ressaca, sim! mas agora é de “rave”, de balada, de pó e de vodca!
talvez não tivesse me casado de forma nenhuma. há pouco tempo descobri que vivo muito bem em minha própria companhia. capitu santiago (mantive o sobrenome só para infernizá-los mais um pouco). ubíqua. blogueira internacional, expert em tendências da moda. quem diria. meu modo de vida é um tapa na cara daquela família.
se eu tivesse escolhido o celibato, teria me poupado de tanta discórdia, dor, julgamentos precipitados. e da amargura que veio junto com tudo isso. às vezes nem com whisky e prozac me livro de toda aflição.
agora me exilam. culparam-me e fui silenciosamente condenada por algo que nunca terão coragem de provar. ezequiel, filho amado. por ele suportei a angústia de um casamento sem paixão, há muito sem tesão. por ele valeu continuar a viver. e calar.
jamais imaginaria que bentinho pudesse ter sido tão vil. covardia descontar suas frustrações num inocente. por toda a eternidade vou culpá-lo por nossas infelicidades. pulha! perdão para ele é fora de cogitação, nessa e nas próximas vidas, se existirem de fato. meu filho não se tornou um homem feliz e seguro por conta da maldade do pai.
ouvi dizer que bentinho está construindo uma morada tal qual à da sua infância na rua de matacavalos. e que pensa escrever suas memórias. quem iria lê-las? quanta soberbia!
desejo-lhe uma vida longa e circunspecta, doutor bento de albuquerque santiago. não preciso desejar-lhe uma velhice infeliz. disso já me certifiquei!
quanto à mim, não consigo me imaginar envelhecendo. prefiro sair dessa festa enquanto ainda estiver bombando. nada de esperar fica monótona, cheia de bêbados inconvenientes ou “junkies” curtindo uma rebordosa, jogados pelos cantos.
não nasci para me tornar a avozinha afável que se realiza limpando ranho de narizes congestionados. ou batendo bolos e mais bolos até ficar com os braços flácidos para saciar as lombrigas dos fedelhos. papel escrito sob encomenda para a doce sancha.
prefiro viver intensamente. tentar ser feliz apesar de tudo e para desgosto de alguns. meu maior prazer é ser notícia na mídia e causar um enorme desconforto à toda família santiago. O que eles chamaram de exílio, para mim é liberdade, ainda que tardia!
soube que me apelidaram de amy winehouse. fiquei lisonjeada, confesso. mas a mim ninguém vai enviar para “rehab”! não há o que mais lhes contrarie do que a vida que levo no desterro. aqui sou dona e senhora da minha casa, meus atos e meu destino. e são eles que pagam pela minha autonomia. e pelo meu silêncio.
esses tempos fui comparada à uma rosa. gostei. com meu perfume, posso oferecer uma viagem “ecstasiante”. ou sofrimento profundo, com meus pontiagudos espinhos. a escolha vai ser sempre minha, claro. aroma ou dor. ofereço ambos simultaneamente, se assim me aprouver. dona das minhas escolhas, também.
batizada em homenagem a uma loba? nome mais adequado meus pais não poderiam ter-me dado, que ironia! loba que defende sua cria à custa da própria vida, se preciso for. fêmea alfa que desgarrada da sua alcateia, uiva de desejo no cio. lobos machos são monogâmicos por opção, para não perderem suas parceiras. as fêmeas dominantes, será que também o são?
talvez um dia eu mande às favas minha discrição. dou uma de louca e provo que não são apenas meus olhos de ressaca. meu corpo todo é tormenta, minha mente é trovão e minha alma, ah, essa é puro maremoto!
ezequiel, meu filho amado! um dia, quem sabe...
os olhos de capitu se cerram, sua imagem se esvai.
fecho o livro: sigo em frente!







Autora: Cristina Bresser
Contato: cris@cristinabresser.com.br

Concurso: I Concurso Literário do Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura - 2016
Organização: Núcleo Interdisciplinar em Direito e Literatura - NIDIL
Classificação:1º lugar, na categoria Contos e Crônicas

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