OSSOS LARGOS (Conto de Paula Giannini)

- Essa menina nasceu com os ossos largos!
A mãe alardeava às amigas, para o desespero de Amanda. O parto, normal, durara 12 ininterruptas horas de inominável agonia.
Dona Tilda era uma heroína, com direito a aplausos e piadinhas sobre a menina que nascera com 6 quilos e 900 gramas.
- Quase um recorde. - Dissera o médico.
- Quase um rinoceronte - As amigas retrucavam baixinho pelas costas, em um tom certeiro o suficiente para que a mãe não escutasse. Mas a criança ouvia.
Costas largas.
- Vai ser campeã de natação. - Acudia correndo a avó, sempre zelosa.
E Amanda cresceu sentindo o fardo da culpa de ser proprietária de um corpo tão...
Pesado!
Baleia. Rolha de poço. Super Size. GGGG. Fat. Gigante. Gorda! A dor do bullying só não era maior que a fúria de ouvir daquele a quem tanto amava que seu rostinho de princesa não combinava com o corpanzil com o qual Deus lhe presenteou. Seu primeiro namorado. O único em quem confiara de corpo e alma.
- E bem mais de corpo do que de alma, não é?! - A debochada amiga selou sua solidão com o afiado comentário.
E ele bem que gostara. Chegou mesmo a arriscar um quase inaudível "eu te amo", enquanto revirava os olhinhos, com os dedos escondidos por baixo da blusa da moça.  
E agora Amanda o via passar de mãos entrelaçadas com a despeitada amiga, magra como uma vareta e de rosto nada angelical.
Fofa. Balão. Dona redonda. Obesa. Mórbida. Moby Dick. O peso dos apelidos só não era maior que sua dificuldade de encarar o próprio corpo no espelho. Tomava banho no escuro. E foi no breu do banheiro que a mãe tropeçou em seu corpo mergulhado em uma poça de sangue.
Não tinha mais interesse na vida. Ao menos não nesta que conhecia. E se negou a abrir a boca ao escutar que o "namoradinho" a vira, encalhada na maca dupla improvisada para a paciente suicida com alto IMC.
Cortara os pulsos.  
E nem os 10 dias de jejum compulsório no coma fizeram-na perder peso. Ao contrário. O soro e as transfusões emprestaram-lhe um estúpido ar de saúde. Estava corada.
- Coitada... Tem um rosto tão bonito.
Saudável, infeliz e decidida. Não queria mais ser Amanda. Sua delicada alma não combinava com o julgamento que dela faziam.
Culpada.
Decidida a perder peso, sentia-se esmagada pela culpa de saborear a saladinha de alface e queijo tofu que lhe enfiavam goela abaixo. E vomitava até mesmo o suco que a mãe a fazia tomar, monitorada pela enfermeira de plantão.
Fome.
O ronco patético de seu estômago ecoou no estetoscópio do doutor que a liberou.
Ossos largos.
Para sempre carregaria o sentimento de não pertencer ao próprio corpo. Seguir a prescrição de dieta do simpático residente seria enganar a si mesma.
Queijinho branco no café da manhã.
Nunca seria magra!
Refeições leves a cada três horas.
Nunca seria amada!
Bulimia a cada caloria ingerida.
Jamais seria anoréxica!
Os papéis picados com a receita do regime voaram da janela de seu carro. Era a quinta tentativa de suicídio. Dessa vez decretara greve de fome. A faxineira a encontrou desmaiada dentro do elevador.  
Hipoglicemia.
Foram precisos quatro homens para carregá-la. A idade lhe trouxera óculos bifocais e muitos quilos a mais.
Há anos abandonara as frustradas tentativas de perder peso, até o dia em que encontrou seu amor de adolescência no caixa do banco.  Aliança na mão esquerda, a calva alongava a testa do magro homem que murchara. E Amanda só conseguia sentir pena.
Pena dele. Pena de si mesma.
Mas surtou ao ouvir que ela lhe parecia estranhamente familiar.
No hospital, voltou a visitar o passado ao vislumbrar entre olhos a falsa amiga, magra como nunca e sem aliança alguma nas mãos.  Também ela parecia infeliz. O mundo se mostrava a Amanda, com o mais cru de seus rostos.
- Ninguém é completamente feliz. - Pensou com seus ossos largos ao receber alta.
No estacionamento do lugar encontrou pendurado no retrovisor um saquinho com um sonho de valsa. Dentro dele o papelzinho dizia: "Sorria! Você é especial."  Por um instante pensou se tratar de um admirador secreto. Olhou ao redor e avistou no estacionamento, seu calvo e antigo amor. O banco ficava ao lado do hospital. Facilidade para a família dos moribundos e convalescentes.
Mas ele não a viu. Arrancou o fusca velho e só então percebeu o flanelinha, sorrindo desdentado, abanando o paninho sobre as moscas que sobrevoavam seu braço coberto de saquinhos com sonhos de valsa.
Ele, porém, lhe parecia feliz.
Enfiou a chave na ignição e suspirou aliviada. A serotonina acabava de fazer efeito em seu cérebro tão carente por um sonho de valsa. Rasgou a receita e ligou o carro antes de dar ao rapaz sem dentes o cartão da clínica popular onde atendia como auxiliar de dentista.
Foi o melhor sonho de valsa que comeu em toda a sua vida. O único livre de culpa.
O flanelinha, infelizmente, só sabia escrever duas coisas. O próprio nome e a frase que decorara para incrementar seus sonhos de valsa.
Era analfabeto.
Mas Amanda jamais soube disso.







Autor: Paula Giannini
Contato: palcoproducoes@hotmail.com
Blog: http://palcopalavra.blogspot.com.br/

Concurso: Prêmio VIP de Literatura - 2016
Organização: A.R. Publisher
Classificação: 20° Lugar – Selecionado para Antologia

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