CASAL PERFEITO (Conto de Paula Giannini)

Eram feitos um para o outro, dizia quem os via assim, aos beijos em pleno meio dia de um dia qualquer, em frente ao prédio onde moravam. Romeu e Julieta, queijo com goiabada, arroz e feijão, brincavam os amigos.
Eram feitos sob medida.
O céu e o mar, a Bela e a Fera, a faca e o queijo. Eram o cúmulo do cúmulo dos clichês amorosos e chegavam a “pegar nojo” naqueles que os viam assim, de mãos entrelaçadas, melosos, melados, cheios de risinhos, beijinhos, e, inhos e inhos. Tudo era diminutivo no vocabulário daquele superlativo e sempre unido casal.
Metades da mesma fruta, na estranha matemática do amor, dois somados, juntos, eram um, e, separados, quase nada. Acordavam juntos, comiam juntos, trabalhavam juntos, sonhavam...
Não se podia pensar nela, sem se pensar nele e vice-versa. Chegava-se mesmo a confundir um e outro. Sempre unidos. Onde quer que um deles se visse, bastava uma esticada no olhar, para em seguida avistar o outro, saído de trás de alguma prateleira ou árvore do caminho.
Era chato!
Pensar na perfeita conjunção harmônica de um casal assim em supermercados, padarias, baladas, era um tédio. Sempre os dois. Sempre aos beijos. Sempre inveja nas amigas desgostosas com seus relacionamentos rasos e tão carentes de romance.
Até que um dia...
Silêncio!
“Preciso respirar.” – Foi tudo o que ela deixou escrito no espelho do banheiro com batom vermelho.
Sobre a pia, a escova de dentes que também compartilhavam, para o horror dela, mais tarde ele veio saber. Assim como, bem mais tarde, veio saber que ela não gostava de filmes de terror, odiava os Beatles e que jamais se sentira feliz durante os intermináveis churrascos de domingo com a família dele.
Ela se foi. E nada mais foi dito. Sumiu como somem as lagartixas durante o inverno. Não que ela fosse uma... Mas seus pés gelados metidos entre as pernas dele, nas noites de frio, foram a primeira coisa que realmente lhe fizeram falta naquele dia.
Sumiu sem deixar vestígios ou pistas sobre a enigmática frase, escrita no banheiro com um batom que nunca usou.
Batom vermelho.
Exagerado - Dizia ele! - Não combina com o meu tom de pele - Ela sorria com ar evasivo e amarelo.
Ela partiu como quem reparte em dois as partes de uma laranja. Partiu sem deixar claro a ele se queria respirar por um dia, por um mês ou se para sempre arfaria sem ele, livre e desimpedida.
Silêncio...
Tudo que ele ouviu naquela noite foi o som do próprio ronco. E acordou assustado com aquilo que, estranhamente, pela primeira vez escutava. Se assustou consigo mesmo e não pregou mais o olho! Fritou na cama por horas a fio, até, vencido, passar o resto da madrugada procurando vestígios da ingrata que agora respirava livre de seu apavorante ressonar noturno.
Abriu gavetas, armários e portas. Revistou bolsos, bolsas, carteiras. Nos frascos de perfume se demorou um pouco mais, tentando sorver o cheiro da desumana criatura que sumira deixando para trás todos os seus pertences.
Não levou nada.
Computador, celular, os vestidos que tanto amava... Deixou para trás uma história que agora ele vasculhava sem pudor ou reserva alguma. Revirava a vida de sua amada, como quem comete um estupro. Surto de fúria. Rasgava livros, desfazia nós, arrancava forros de casacos. O monstro que habitava seus esgotos acordava agora com a força de uma fome que ele jamais imaginou possuir. E agora ele se alimentava dela, caçando furioso um motivo para tão súbito... Buscou a palavra em vão.
Rompimento!
Rasgava a alma de seu amor, estraçalhando a facadas o estofado de um sofá de estimação. Herança da avó! A única coisa que ela deixara para trás com dor no coração. Também disso, bem mais tarde, veio saber pela boca de estranhos.
O dia já nascia quando ele abriu a porta do armário do banheiro, destampando potes de cremes... Tantos... Se lambuzou, meio alucinado, do néctar da juventude daquela bela e cruel criatura. A fera dentro dele tinha fome.
E ao se olhar no espelho, a figura desgrenhada e suarenta estampava olheiras da noite insone e sem comer. Sentiu prazer com o que viu, antes de quebrar o próprio reflexo com um soco. O grosso sangue que escorreu não era o seu, mas o da vil mulher que já não precisava dele.
Só queria respirar.
Abriu a janela e arfou a manhã como um bicho, enquanto subia no parapeito urrando aos vizinhos que, também ele, agora era livre!
Olhar para baixo e ver a cidade acordando, do décimo segundo andar, lhe pareceu o mais acertado a fazer. Soltar as mãos que doíam do sangue e dos estilhaços que ainda lhe cravavam a pele, foi ainda mais fácil que gritar. E fechou os olhos. E soltou um dos pés.
E caiu...
Caiu em si no momento em que a campainha tocou. O porteiro que enfiou as correspondências por baixo da porta queria saber se tudo estava bem. A vizinha do primeiro andar fora atingida no olho por uma gota de sangue, antes mesmo de ouvir os gritos ou de ver a coleção de pinguins de vidro da traidora se espatifar na marquise. - Vôo incompleto de um pássaro feito para nadar... - Filosofou a mulher ao recolher para si uma das aves de porcelana. Também ela invejava o invejável casal de beijoqueiros pombinhos.
E só então ele chorou. Seu sangue servir de colírio à moradora do andar de baixo, causou-lhe um misto de asco e autopiedade.
Era um nada! Abandonado por uma mulher que mal sabia empregar a primeira pessoa do pronome oblíquo... - Para eu fazer, ele explicava. - Não para você, para mim, mesma. - Ela se saía sempre com uma piadinha precedida de um tolo sorriso.
- Pensando bem, fora ele quem lhe ensinara tudo! - Espumou ao colega de trabalho que telefonou para saber se tudo estava bem. Há três dias não apareciam no escritório...
- Não estava! Nada ia bem.-
E o mundo girava em ânsias de vômito enquanto ele quebrava a quinta garrafa vazia no chão do banheiro.
A ingrata... Não sabia escolher bebida. De tudo gostava doce. Perfumes, comidas, cores... O estômago, vazio há dias, vomitava o nada em espasmos.
Ela era açucarada.
Não que isso lhe desagradasse. O cheiro de baunilha da bela fora a primeira coisa que lhe chamou a atenção naquela noite de verão em que se conheceram.
E noites quentes tiveram muitas e tantas...
Sufocado com o próprio vômito, se lavava nas obscuras águas da privada onde tantas vezes se sentara aquela tórrida mulher de vocabulário raso.
Tudo precisava ensinar a ela. Era sobrancelha! E não sombrancelha... O vinho tinto se devia tomar à temperatura ambiente. - E o branco pede peixe… - Na ladeira era sempre bom puxar o freio de mão… Na cama, primeiro o lençol, depois o acolchoado... E ela ficara nua logo na primeira noite.
Doce!
Ela era enauseantemente doce. Assim como doce era o gosto dos próprios dedos lavados na gosma quente dentro do vaso.
Estendeu a mão. O papel higiênico nunca estava onde devia estar!!! Nada estava em seu lugar... Nunca. - Por que a cadeira estava afastada da mesa? Só mulher vulgar usa vestidos tão curtos. Por que na mesa tão pouco arroz? Para quê tanta comida?
O alumínio do requeijão devia ser retirado inteiro. A pasta de dente usada até o final. O box do banheiro aberto da esquerda para a direita. Quantas vezes precisaria repetir?!
Agarrou-se à cortina do chuveiro, tentando se levantar em vão. A bebedeira se confundia com aquele estranho zunido que já há cinco dias ele ouvia. Ou seriam sete? O tombo foi pateticamente inevitável.
Mais uma vez ensangüentado... Agora era o supercilio que o levara novamente ao vaso sanitário. Sem enxergar direito, o tato encontrou algo no fundo do poço.
E tudo apagou.
Já era madrugada quando abriu os olhos. O apagão havia deixado todo o bairro no escuro. Só a placa do hospital em frente permanecia acesa. - Gerador. - Ele explicara a ela um dia. Ela já sabia. Mas ele só veio a descobrir mais tarde... Ela fingia não saber de muita coisa para fazê-lo se sentir mais homem. E disso ele veio a ouvir meses depois, da boca do maior de seus desafetos.
Quando voltou a si já era dia. A claridade invadia os olhos inchados como pregos em brasa. Só então se deu conta do objeto em forma de termômetro em sua mão. E só então se deu conta, também, que o inchaço só lhe permitia enxergar com um dos olhos. Forçou a vista a fim de decifrar aquilo que arrancara de dentro do vaso sanitário. Um teste de gravidez.
Negativo!
Um teste de gravidez negativo do filho que nunca quiseram ter. Nunca! Disso não precisaria saber por estranhos. Ele se negava veementemente sequer a discutir a possibilidade.
Negativo!
Somos contra o atual governo. - Ela disse o contrário? Pois se enganou! É burra. Ignorante! - Ele se enfurecia. - Somos ambos a favor da pena de morte! - E ela baixava os olhos.
Pena de morte! A cabeça latejava como um balão febril.
Pena de morte. Um bebê com uma imensa testa flutuava sorrindo no teto do banheiro. Em seu delírio, era ela o carrasco da morte de seu amor.
Pena de morte... Talvez ela tenha em algum momento desejado ter o tal filho. Esquecera de perguntar a ela. Ou talvez tenha perguntado. Quem sabe não tenha prestado atenção à resposta… Não sabia! Assim como não entendia de fato se ela se negara a prestar o último serviço para o qual foi convidada por falta de vontade, ou simplesmente por medo dele.
Medo.
Talvez a veneziana pudesse sim, ficar fechada em noites de inverno. Não sabia se era o frio ou se flutuava em um rio conduzido por Caronte. O corpo se sacudia em fortes tremores, mas ele não tinha moedas para dar ao barqueiro. Talvez o carrasco aceitasse um teste de gravidez negativo como paga. A morte deveria se envergonhar diante de uma vida que nem sequer pensou em existir.
Não pensava coisa com coisa. Nada fazia muito sentido. Talvez se não reclamasse tanto de moedas espalhadas pela casa, agora encontrasse uma a fim de pagar por uma morte digna... Talvez se não a mandasse sempre calar a boca de forma tão grosseira, como se dela fosse dono e senhor. Talvez um ovo frito pudesse ter sua gema estourada. Talvez tenha sido ele o algoz de um amor que aos poucos parecia se assemelhar a um tipo de ódio.
Talvez...
Quem sabe se não a tivesse sufocado tanto. Talvez o mundo não girasse apenas em torno de seu umbigo.
Em que momento se perderam um do outro? Quando foi que o doce passou do ponto e ficou com sabor de enjoativo asco… O amargor tomara conta do casal. Talvez a culpa fosse dele. Em que momento se tornaram um perfeito casal de aparências?
Talvez…
O amargo em sua boca grudava a grossa língua com lábios, amídalas e faringe. O ar aos poucos se tornava escasso. Dez dias!
Ela precisava respirar…
Ele a sufocara ao ponto do grito. E o grito fora dado com batom vermelho no espelho do banheiro. O mesmo que ele considerava exagerado, convencendo-na a não usar jamais.
Silêncio…
O silêncio gritava mais que seu domínio sobre ela. Em que momento o grito se tornou quase um sussurro? Talvez não precisasse estar sempre no comando. Talvez precisasse vigiar mais. - Quem ama vigia! - Entendera mal a utilização do verbo.
Tentando buscar o ar, as costas nuas deitadas no chão do banheiro doíam. Chegava enfim à última fase de sua agonia. Se culpava por tudo o quanto fizera. Culpado! Era vítima, tirano e juiz de sua própria dor.
Era o fim!
E o fim produzia um ruído oco de insólitas explosões. A mãe arrombara a porta a socos. Não acreditou na figura que viu. - A casa, destruída, completava o quadro capaz de tirar o sossego de qualquer uma. - Mais tarde confidenciou ao porteiro.
- Esse desleixo com aquilo que era seu - ponderou a mãe - talvez seja sinal de que ela volta.... - Isso de deixar tudo para trás, lhe devia dar um certo consolo. Uma tábua de salvação na qual poderia se agarrar no momento de desespero.
Trágico!
Ele era trágico desde muito pequeno. Não sabia ouvir um não.
Na maca, a luz vermelha da ambulância piscava nos rostos dos vizinhos que se apertavam para ver o que havia. Já não sentia dor, ligado a fios e agulhas. Agora ela deveria estar rindo dele, afogada no próprio oxigênio particular, mas ele não se importava mais.
Talvez devido aos calmantes, quem sabe ao efeito dos analgésicos que lhe aplicaram, o perdão pareceu a ele uma reconfortante decisão a ser tomada. Não que tenha decidido… Apenas sentiu. Era um barco flutuando à deriva e já não sentia nada.
Voltou a cabeça no momento exato em que a porta da ambulância começava a se fechar e para sua surpresa...
Vislumbrou a bela.
Mochila à tiracolo e uma mala em uma das mãos. O cabelo curto e agora vermelho como sangue, ressaltava ainda mais sua beleza. Mulheres são assim. Cortam o cabelo quando querem se livrar de algo. Era algo sabático. Parecia outra.
A mão adormecida sentiu o calor do feminino toque. Seus olhos buscaram os dela. Eram os mesmos da primeira noite em que a vira. Alguma coisa, porém, havia mudado nela.
Tentou balbuciar algo. O dedo da bela em seus lábios, lhe trouxe a paz que há quinze dias desconhecia.
Trágico.
Talvez tudo não tivesse passado de mais loucura sua. Talvez não houvesse um para ser culpado… Talvez a culpa recaísse sobre ambos. Talvez fossem ambos carrascos e vítimas de cada uma de suas pequenas escolhas diárias e pessoais. Talvez ele já não estivesse mais ali. Talvez, tampouco ela....
Sentindo o sono pesar o olho que ainda conseguia abrir, ele arriscou um patético sorriso, enquanto ela sumia em uma névoa branca e de cheiro enauseantemente doce.
A expressão que se viu em seu rosto se pareceu com um espasmo involuntário. Disso também só veio a saber ao acordar, dias depois, pelo enfermeiro que lhe segurara a mão a caminho do hospital.







Autor: Paula Giannini
Contato: palcoproducoes@hotmail.com
Blog: http://palcopalavra.blogspot.com.br/

Concurso: “Cidade do Penedo de Poesia e Conto/2015” 
Organização: Academia Penedense de Letras
Classificação: 8° Lugar – Menção Honrosa

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